O movimento operário diante do governo Lula

A vitória e a chegada do Partido dos Trabalhadores à Presidência da República do Brasil apresentam enormes desafios ao movimento operário brasileiro. Desafios que, certamente, estimulam o debate sobre a relação dos movimentos sociais com os governos de esquerda. Pela primeira vez na história, o movimento operário brasileiro está diante de um governo liderado por um partido nascido das próprias organizações dos trabalhadores. O que o movimento operário pode esperar deste governo e como deve agir em relação a ele? O problema está relacionado ao papel das organizações de esquerda no novo contexto político do Brasil, o que até então somente havia sido refletido em nível municipal e estadual. As organizações de esquerda, que se desenvolveram como oposição a diversos governos, devem continuar na oposição? Ou será que não seria melhor diminuir a pressão sobre o governo Lula, já que ele representa – em tese – o interesse dos trabalhadores.

O movimento operário tem uma longa história no Brasil, cujo auge deu-se no final dos anos 1970. As greves gerais, em plena ditadura militar, contribuíram para a criação da CUT – Central Única dos Trabalhadores –, a maior central sindical da América Latina. Também o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – e os movimentos de pequenos agricultores intensificaram sua organização neste período, que pode ser caracterizado pela queda do regime militar e pelo ressurgimento da força das organizações de esquerda. O PT foi criado em 1980 por sindicalistas, parte dos setores progressistas das Igrejas e diferentes grupos marxistas, sendo fortemente influenciado por esta conjuntura da época. Na década de 1980 a politização no Brasil foi bastante intensa e o movimento operário alcançou significativas conquistas, que foram oficialmente incorporadas na Constituição Federal de 1988.

A década de 1990 foi, pelo contrário, um período de perdas políticas para o movimento operário. A política neoliberal desenvolvida por Fernando Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso modificou a situação dos trabalhadores de tal forma que a mera manutenção dos empregos passou a ocupar o centro das principais lutas sindicais. Através da privatização do setor público, aumento do desemprego e das perdas salariais, a maior parte dos sindicatos ficaram desmobilizados e as possibilidades de greve foram gradativamente reduzindo. Nesse contexto surgiu, paralelamente à CUT, a Força Sindical, introduzindo na luta sindical uma nova visão: a do assim chamado “sindicalismo de resultados”. A Força Sindical criticava a relação da CUT com o PT, apoiou o processo de privatizações de Collor (chegando a ter o Ministro do Trabalho deste) e FHC e, atrelada aos empresários, obteve conquistas que foram apresentadas aos trabalhadores como resultado de uma moderna forma de agir, baseada no consenso. 

A CUT enfraqueceu suas concepções e sua organização. Vacilações de direção, a despolitização dos trabalhadores e o avanço do capital conduziram a uma crise do movimento operário e muitas organizações renunciaram a princípios que nos anos 1980 eram vistos como progressistas e decisivos. A democracia de base, a renovação nas direções, a estrutura unitária, o planejamento estratégico, as greves gerais e a consciência política foram perdendo cada vez mais seu significado. A maioria das lutas foi conduzida de forma fragmentada e os seus resultados tornaram-se conseqüentemente menores, o que desmotivou a participação de muitos trabalhadores nesses movimentos. Apesar disso, existem em torno de 20 mil sindicatos oficialmente registrados no Brasil e a CUT continua sendo a principal organização de unidade sindical da América Latina. O decepcionante desenvolvimento do movimento operário na década de 1990 também teve repercussões políticas no PT.  Apesar do partido ter acumulado vitórias eleitorais, especialmente a nível municipal, pode-se falar de uma perda política no seu programa. A maioria do PT abandonou as concepções socialistas e, nesta última eleição, apresentou a idéia de um pacto social na sociedade brasileira, com o objetivo de desenvolver socialmente o país com prioridade no setor produtivo.

A maior parte da economia do país tornou-se dependente de investimentos estrangeiros nos governos anteriores, de tal forma que o poder de ação política do governo Lula é muito pequeno. Para evitar um caos maior, o governo se obrigou a apoiar contratos com o FMI para poder, em seguida e gradualmente, desenvolver alternativas mais independentes. O PT geralmente alcançou vitórias eleitorais quando a situação do Estado estava insuportável e quando a direita já não oferecia mais alternativas. Em situações melhores, o PT tinha menores chances eleitorais na oposição, já que havia uma tendência da população satisfeita com o voto em partidos de direita.

O desenvolvimento do PT e do movimento operário ocorreram, portanto, de forma paralela, tanto em seu auge como em sua crise. O novo neste contexto é que o PT, agora, após três tentativas frustradas, finalmente é o partido que lidera o governo brasileiro, enquanto o movimento operário continua em crise. A vitória eleitoral, no entanto, não representa a tomada do poder por parte dos trabalhadores, pois nem a maioria do PT nem os 52 milhões de brasileiros que votaram em Lula estão dispostos a apoiar o programa do PT dos anos 1980, o qual estava muito mais próximo das expectativas do movimento operário do que atualmente. O poder continua em disputa na sociedade e o programa apresentado pela vitoriosa campanha de Lula é uma contraditória tentativa de juntar interesses, até então conflituosos, para vencer as eleições.

A vitória eleitoral aconteceu, o que ainda não significa que, com isso, a correlação de forças tenha mudado em benefício dos trabalhadores. Tal mudança um governo eleito não consegue fazer sozinho. Isso, também, não depende, simplesmente, da vontade deste governo ou da maioria do partido, pois o problema é muito mais profundo: até que ponto o governo Lula tem respaldo social da sociedade para, efetivamente, implementar as importantes e esperadas mudanças? Parece que significativos avanços como a reforma agrária, a inversão de prioridades, a reestatização de importantes empresas e o cancelamento no pagamento da dívida externa – que já foi paga várias vezes –, só podem ser implementados através da mobilização popular. E, nesse aspecto, a posição do movimento operário diante desse governo assume uma importância fundamental, tanto para sua sustentação política como na pressão social para a implementação dessas históricas demandas do PT que no atual programa de governo pouco aparecem ou não estão claras.

É evidente que o movimento operário deve preservar sua autonomia, tanto diante de um governo como diante de partidos políticos. Mas uma pergunta precisa ser feita, apesar disso: pode o movimento operário ser independente de um governo de esquerda? A independência do movimento operário está relacionada com a luta de classes. Até então isso era muito simples no Brasil, já que os governos estavam situados ao lado do capital e o movimento operário, de forma independente, fazia oposição. Mas, se um governo estiver claramente situado em favor dos trabalhadores, qual será o critério que o movimento operário adotará para se posicionar? Tendo em vista que o movimento operário tem funções distintas e que não podem ser confundidas, é importante que ele continue autônomo e tomando as decisões em suas próprias instâncias. Mas, considerando seu projeto de sociedade, o movimento operário não é independente de um governo liderado pelos trabalhadores, tendo em vista que ambos almejam o mesmo objetivo. O movimento continua independente do capital e de seus representantes, contra os quais a luta de classes deve ser dirigida, e não de governos que podem ajudar nessa tarefa, à medida que procuram desconstruir o aparato repressivo do Estado e apoiar as liberdades da organização dos trabalhadores.

Neste sentido, a avaliação de um governo, levando em conta sua posição na luta de classes, é decisiva para a ação do movimento operário. Essa questão tem sido claramente respondida até agora: o governo Lula representa os interesses dos trabalhadores e, por isso, recebeu o apoio de movimentos e partidos de esquerda que o apoiaram na campanha eleitoral. Assim que esse governo foi eleito, não se altera essencialmente nada nessa posição. Apesar disso, há o risco de um governo mudar de rumo, o que pode mudar a avaliação por parte do movimento. O complicado no governo Lula é que ele é uma composição que comporta um amplo espectro ideológico e, por isso, se apresenta de forma contraditória.  Mas, assim como no movimento operário e no PT as posições estão cada vez mais diferenciadas, também no governo Lula os seus rumos estarão em disputa.

O governo Lula apresenta dois grandes riscos: 1) ele pode frustrar as expectativas da população e, com isso, preparar a derrota da esquerda, caso ele não seja capaz de implementar as importantes e prometidas mudanças na sociedade brasileira; 2) ele pode ser colocado num beco sem saída pela política neoliberal e ser cooptado pelos interesses do capital, de forma que não terá outra alternativa a não ser agir em benefício deste. Para evitar ambos os problemas, o movimento operário assume um significado importante. Um inteligente, constante e responsável movimento de crítica de esquerda pode impedir a tendência à burocratização, de forma que o perigo de uma cooptação capitalista possa ser diminuído. Por outro lado, a mobilização da sociedade civil é tão importante para este governo, pois somente através dela o governo terá condições efetivas de promover as mudanças que satisfaçam as expectativas da maioria da população.  Neste sentido, a responsabilidade diante deste governo é enorme e ações voluntaristas de esquerda podem ser perigosas. Assim como ações que tenham em vista unicamente a lógica governista, que levarão o governo para o isolamento social e a tentar assegurar-se unicamente na popularidade de Lula.

O apoio ao governo é, neste momento, o mais importante, pois se trata das perspectivas de futuro da esquerda no Brasil. Os interesses do capital estarão pressionando constantemente o governo, e somente uma ampla base social pode impedir que ele venha a caminhar para a direita ou a conceder espaço para a vitória dos neoliberais. Se este governo vir a frustrar, também frustrará o desenvolvimento do movimento operário, pois ele não se desenvolveu isolado do PT e até agora a construção de ambos apoiou-se de forma recíproca. Esta parece ser a grande diferença do governo Lula em relação aos outros: ele representa, ao mesmo tempo, o resultado e a esperança de inúmeras organizações de esquerda que se desenvolveram durante as últimas décadas no Brasil.  O grande desafio é combinar as expectativas de cada movimento com a construção de uma nova perspectiva de poder político de esquerda, na qual tanto o governo como a base social dos trabalhadores organizados precisam estar empenhados. Os rumos deste processo, no entanto, permanecem em aberto.

* Doutorando em Ciências Sociais na Universidade de Osnabrück – Alemanha

 

Revista Espaço Acadêmico – Ano III – Nº24 – Maio de 2003 – issn 1519.6186