Congresso da Terra 2022 – De volta à terra: juntos pela mudança agrária e alimentar!

Tradução para o português da conferência realizada de forma remota.

Angela Küster: Olá, bom dia, eu estou muito satisfeita por começarmos hoje com o segundo dia, abordando a agroecologia como uma alternativa à agricultura convencional. Estou muito feliz em receber aqui o Dr. Antônio Andrioli. Ele é um filósofo com uma formação multidisciplinar e que trabalha em diferentes campos científicos. É especialista em Cooperativismo e doutor em Ciências Econômicas e Sociais pela Universidade de Osnabrück. Com isso, ele tem um domínio muito bom da língua alemã e eu estou feliz de poder falar com ele neste Congresso da Terra. A sua tese de doutorado foi sobre o tema da soja orgânica versus soja transgênica, pesquisando sobre as tecnologias agrícolas de pequenos agricultores no Sul do Brasil. Em 2008, ele publicou o livro As Sementes do Mal, junto com Richard Wuchs. Eu imediatamente encomendei a versão em português desse livro quando estive no Brasil. Desde então, ele tem atuado como um cientista crítico e engajado. Um crítico empenhado em estudar as biotecnologias e a modificação genética das plantas. Ele também foi membro da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, a CTNBio, e integrou como especialista o Grupo de Estudos em Agrobiodiversidade. Atualmente, é professor do programa de Mestrado em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável na Universidade Federal da Fronteira Sul, que ele ajudou a construir desde a sua criação, em 2009. E ele também está frequentemente em viagens pela Alemanha. Eu acho que a última vez foi em 2020, se eu li corretamente. Eu estou muito contente e queremos iniciar com a situação da agricultura no Brasil. A transgenia é a sua especialidade. Qual é a situação dos transgênicos no Brasil neste momento? A transgenia se expandiu muito ultimamente também na área da soja?

Antônio Andrioli: Sim, eu costumo dizer aqui que a situação está ficando cada vez pior, porque nem sabemos mais o que ainda está por acontecer. O plano do Governo é de transformar os últimos cantos da biodiversidade que ainda restam no Brasil em monoculturas, em grandes projetos agroindustriais e expandir tudo isso. Não temos mais os dados necessários para poder avaliar essa situação, porque também isso está sendo destruído sob este Governo. Se pegarmos como exemplo o desmatamento na região amazônica, vários cientistas que trabalhavam nisso foram demitidos, porque evidenciaram essa destruição, que aumentou durante esses anos. Há cientistas que também continuam sendo perseguidos por aqui. Muitos dos nossos importantes projetos de pesquisa científica, inclusive aqueles que preconizavam uma maior autonomia dos agricultores, como aqueles envolvendo sementes, foram abandonados. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agroepecuária, a EMBRAPA, foi muito avançada em pesquisas, desenvolvendo variedades de soja, de milho, etc. Eu agora só vou entrar na questão da soja, porque aí tivemos os piores efeitos dos cultivos transgênicos no início. E hoje, temos 95% de soja geneticamente modificada. Os contratos entre a EMBRAPA e a Monsanto (que agora é Bayer) ainda foram celebrados em governos anteriores. Especialmente sob o Governo de Michel Temer, nós tivemos um aprofundamento dessa dependência, de modo que quase não temos mais acesso às variedades convencionais. Isso significa que, mesmo que os agricultores agora estivessem em condições, ou estivessem dispostos a produzir novamente a soja convencional ou orgânica, isso não seria mais possível. Esse foi o tema da minha tese de doutorado, 15 anos atrás, em Osnabrück. Naquela época, nós concluímos que não era possível resistir apenas em uma pequena ilha com soja convencional, porque a contaminação avançou muito fortemente. E isso, no caso da soja. A soja é uma planta que se poliniza a si mesma. Ou seja, ela praticamente não poliniza de forma cruzada. E, por isso, já conhecíamos toda essa contaminação. Com o milho, isso foi muito pior, porque com o milho temos uma polinização cruzada. Na região onde estou morando agora ainda temos variedades tradicionais de milho. Aqui chamamos isso de milho crioulo. São antigas variedades, que aqui foram preservadas pelos povos tradicionais. Mas, mesmo essas variedades estão sendo contaminadas. Portanto, não temos nenhuma chance de resistir ou retornar a uma forma mais sustentável de produção agrícola se não tivermos mais acesso às sementes. E isso talvez seja o mais problemático. É por isso que o título do meu livro foi As Sementes do Mal, porque nós focamos nas sementes. Não que elas sejam más em si, mas porque se tornou possível determinar através da semente os agrotóxicos, os fertilizantes químicos e a forma de produção que seriam adotados. E isso, como afirmamos no início, reforça a monocultura, uma agricultura orientada para as agroexportações, que conhecemos há 500 anos. O atual Governo só intensificou isto, porque agora não são apenas os grandes proprietários de terras que exercem pressão sobre um governo. Agora são os próprios proprietários de terras que estão no Governo, são eles que determinam as grandes políticas que orientam a nossa produção agrícola.

Angela Küster: Isso também representa uma grande dependência para as famílias de pequenos agricultores em relação a esta semente, que eles precisam comprar a cada ano.

Antônio Andrioli: Sim, e ainda precisam pagar royalties por ela, mesmo que, na maioria das vezes, ela nem tenha sido semeada por eles. Ela pode ter vindo de uma lavoura vizinha. E eu diria que essa contaminação se torna lucrativa. A contaminação foi intencionalmente apoiada através do contrabando da Argentina. Assim, o contrabando foi recompensado no Brasil. Desde o decreto do Governo Lula, em 2005, ao invés dos contrabandistas — que trouxeram as sementes da Argentina para o País quando ela estava proibida aqui —, serem punidos, eles foram recompensados. E depois houve aquele prazo, no qual o uso de sementes contrabandeadas deveria parar e só seriam utilizadas variedades certificadas no Brasil. Isso também não deu certo. E, ao final, as grandes corporações agrícolas ainda estão lucrando com o cultivo dos pequenos agricultores. Muitos deles sequer compraram a semente dessas empresas. Eles simplesmente as contrabandearam ou se tornaram vítimas da contaminação de lavouras vizinhas. E isso, então, torna o conceito de soberania ou de segurança alimentar muito difícil em nosso País, porque são esses pequenos agricultores que produzem a maior parte dos alimentos.

Angela Küster: Além desta dependência econômica, o que isso significa — mesmo para aqueles que não têm acompanhado esse debate sobre o problema dos transgênicos —, em termos de efeitos sobre o meio ambiente e a saúde? O que se conhece a esse respeito?

Antônio Andrioli: Na semana passada, eu fui procurado para uma entrevista em um noticiário da Rede Globo. Eles agora tiveram a ideia de fazer uma reportagem sobre os agrotóxicos contrabandeados pela fronteira da Argentina, vindos do Paraguai e, talvez, da China. E é interessante que ambos os produtos são da Syngenta, que agora é ChemChina. Um deles é um inseticida. Muitos agricultores brasileiros não estão mais conseguindo lidar com o ataque de lagartas no milho. Mas foi precisamente contra a infestação de lagartas no milho que essas plantas transgênicas foram desenvolvidas. Uma parte do genoma de uma bactéria chamada bacillus thuringiensis foi inserida no milho para que pudessem ser produzidas dentro da planta algumas toxinas para combater insetos. Nós temos no Brasil uma lagarta, a helicoverpa armigera, que se tornou muito resistente, especialmente no estado da Bahia. Diante disso, então, o Governo Federal permitiu, excepcionalmente, por um curto período de tempo, a importação do inseticida benzoato de emamectina para algumas regiões do País. E agora, é precisamente este produto que está sendo contrabandeado para o outro lado da fronteira. Isso é, antes de mais nada, um sinal claro de que há uma demanda por esse produto. Porque os agricultores não conseguem mais dar conta do controle de insetos apenas com o milho transgênico. Eles pagaram por uma variedade, ou como eu disse antes, muitos nem a compraram, mas tiveram que pagar royalties porque suas variedades foram contaminadas pelas transgênicas. Por isso, eu costumo dizer que se trata de variedades geneticamente pioradas, que contaminaram as variedades tecnicamente melhores que tínhamos, as desenvolvidas pela EMBRAPA, por exemplo. E, depois disso, surge a resistência de lagartas e os agricultores tiveram que usar um agrotóxico adicional, que foi novamente proibido nesse meio tempo. Essa substância é muito tóxica. Ela tem efeitos neurotóxicos e é também particularmente prejudicial para as abelhas. Nós estamos tendo uma grande morte de colônias de abelhas aqui em nossa região. E isso também está relacionado à forma de agricultura, com o uso de inseticidas que vêm sendo utilizados na região. O outro produto contrabandeado é o paraquat, bastante conhecido na Europa e proibido por lá em 2007. No Brasil, ele está proibido desde 2020. E para que é usado o paraquat? Para combater ervas daninhas que se tornaram resistentes ao glifosato. E qual foi a grande maravilha anunciada com a soja transgênica? Ela é uma planta que resiste ao glifosato, permitindo que este herbicida também pudesse ser pulverizado sobre a soja. Mais tarde, essa tecnologia também foi incorporada ao algodão, ao milho e outras plantas. E o que acontece agora? Nesse tempo nós já temos mais de dez plantas que são resistentes ao glifosato. E, diante disso, qual é a alternativa apresentada no mercado de agrotóxicos? O paraquat! E que tipo de substância é essa? Há muito tempo nós sabemos que o paraquat está associado à Doença de Parkinson e que ele pode causar sérios problemas reprodutivos em organismos vivos, inclusive em seres humanos. Isso foi descoberto, por exemplo, em diversos experimentos com ratos. É por isso que essas substâncias foram proibidas. Eu ficaria satisfeito se o atual governo alemão agora realmente cumprisse o que está escrito no seu acordo de coalizão, na página 151: “Faremos uso das possibilidades legais para proibir a exportação de certos agrotóxicos que não são autorizados na União Europeia por razões de proteção da saúde humana”. Portanto, se o governo alemão fizer uso disso, então já teríamos algum progresso. Porque, como eu disse, agora temos que lidar com a alemã Bayer no que diz respeito aos transgênicos. E, além disso, seguimos lidando com a suíça Syngenta, ou seja, agora com a ChemChina. Mesmo em tempos de pandemia de coronavírus, tivemos que lidar com problemas relacionados à aprovação de novas substâncias tóxicas no Brasil. O atual governo brasileiro já aprovou 1.500 novos agrotóxicos. Nunca tivemos tantos agrotóxicos aprovados antes. E agora há um novo projeto de lei no Congresso Nacional para tornar essa aprovação “mais flexível”. Em outras palavras, estão sendo aprovados agrotóxicos proibidos em outros países. O projeto de lei já passou pela Câmara dos Deputados e agora está indo para o Senado. Estamos diante de novos perigos. A transgenia foi um início e nós sempre afirmamos que não se poderia esperar das corporações agrícolas responsáveis pela produção de agrotóxicos o desenvolvimento de variedades que viessem reduzir o uso de venenos na agricultura. Isso não faria sentido, economicamente falando. Mas, muitas pessoas acreditaram nisso e isso ainda vem sendo propagado em muitos meios de comunicação. O que temos visto aqui, após 20 anos de cultivo de transgênicos, é que temos três vezes mais uso de agrotóxicos na produção de soja e não menos! Este é o resultado e temos que dizer isso muito claramente! Infelizmente, também no acordo comercial do Mercosul com a União Europeia está prevista a importação de agrotóxicos. Eu ficaria feliz se essas brechas forem de fato eliminadas, também em nível internacional, pois nesse âmbito ainda estamos dispostos a lutar. Porque, por aqui, o terreno é muito difícil. Porque, sob este Governo, sob este parlamento e sob este judiciário, há muito pouco que se possa fazer. E tudo isso é tão óbvio. Somos campeões mundiais no consumo de agrotóxicos desde 2008 e ele ainda está aumentando. E isso se dá às custas da natureza, às custas da saúde humana e, eu diria também, às custas da saúde das pessoas que importam esses produtos à base de soja do Brasil. Porque a soja também se destina à pecuária, especialmente à criação intensiva de animais na Europa. E essa é a base das exportações agrícolas, porque a soja é muito barata e possui um alto teor de proteína. É por isso que eu também sempre digo que uma lacuna jurídica em nível europeu, permitindo que os produtos de origem em animais alimentados com soja transgênica não sejam rotulados, precisa ser eliminada. Portanto, ovos, carne e leite também precisam ser rotulados. Somente assim os consumidores na Europa podem fazer algo a esse respeito. E isso é muito importante que seja sempre considerado.

Angela Küster: Sim, exatamente. Eu não creio que muitas pessoas estejam cientes que, ao consumirem aqui produtos de animais que foram alimentados com soja geneticamente modificada, elas podem praticamente estar sendo afetadas com todos os agrotóxicos que vêm com ela e a carne também pode conter muitos deles. No livro com Richard Fuchs, ele escreveu a história de como as vacas de um agricultor foram terrivelmente afetadas após terem sido alimentadas com milho geneticamente modificado. De alguma forma, ele mesmo ainda nem havia visto os estudos publicados aqui até agora, de que podem realmente haver danos à saúde. E o outro paradoxo é que a Bayer está ativa no Brasil há muito tempo. Agora ela comprou a Monsanto e, com ela, o negócio de sementes. E, ao mesmo tempo em que os venenos que já estão proibidos na Europa seguem sendo utilizados, ela agora também vende os medicamentos praticamente usados para as doenças que eles mesmos causaram. É por isso que o senhor também exige que tentássemos parar imediatamente com essa importação de soja. Mas, provavelmente, pode ser algo difícil para a produção animal aqui, sem essa ração…

Antônio Andrioli: Sim, nós estamos agora criando um observatório da soja na nossa Universidade. A ideia surgiu originalmente em uma conferência na Suíça. Eu estava em Berna e o governo suíço havia anunciado que seria o único a não comprar soja transgênica. Eu não sei em que estava baseado o anúncio, mas quando eu afirmei que achava muito difícil haver um país que não importasse soja transgênica, tivemos a ideia de estudar melhor isso localmente. E essa era a ideia original. Estamos agora em processo de criação de um observatório sobre a soja no Conesul. Portanto, ele tem a ver com o Brasil, o Uruguai, o Paraguai e a Argentina. Atualmente, esses também são os países que integram o Mercosul. Estamos tentando estudar os efeitos sociais e ambientais da produção de soja em nossa região. É claro que um dos grandes problemas que temos aqui é que os pequenos agricultores também produzem soja e uma mudança para outra forma de produção, como a Agroecologia — que anunciamos aqui há muito tempo como solução, também de um ponto de vista científico —, é muito difícil. Essa transição também é difícil para os agricultores europeus, que lidam com a soja como um produto importado do Brasil. Os exportadores estão aqui. E agora estamos exportando a soja com prováveis resíduos de agrotóxicos anteriormente provindos da Europa. Então, eles voltam novamente. Mas, há nisso também uma armadilha. Como podemos sair dessa armadilha para podermos cultivar outros produtos? Para isso, uma estratégia europeia para a promoção das proteaginosas é muito importante. A Alemanha, em particular, continua com o cultivo de tremoço, de alfafa e de outros tipos de feijão. Há toda uma diversidade de plantas que também são ricas em proteínas. Isso significa que não precisa ser importada tanta soja. E, além disso, a soja também poderia ser cultivada na Alemanha, o que já existe. A Associação Soja do Danúbio, por exemplo, tem analisado em que medida seria possível cultivar soja na Europa para reduzir a dependência de importações do Brasil. E a terceira alternativa é a que você mencionou. Poderíamos, ao menos, reduzir essas importações de tal forma que não se utilize mais aquela soja, em cujo cultivo foram evidenciadas violações dos direitos humanos e destruições de florestas. Estou falando agora sobre as florestas nativas. Podemos desenvolver aqui uma espécie de selo para a soja. Isso já vem ocorrendo há muito tempo em todo o setor, envolvendo os comerciantes de soja. Mas sempre são constatadas fraudes. Repetidamente lemos relatos de que uma soja supostamente livre de transgênicos, era transgênica. E, mesmo que ela fosse livre de transgênicos, ela não estaria livre de agrotóxicos. E, eu preciso afirmar isso aqui, também não estaria automaticamente livre de desmatamento. Assim como também não estaria necessariamente livre de trabalho infantil e de trabalho escravo. Então, talvez pudéssemos criar este selo através de nosso observatório da soja, para que, pelo menos, saibamos melhor quais agrotóxicos temos nesta soja e quais são as modificações genéticas que existem nela. Já existe nela uma resistência a insetos e também existe a resistência ao glifosato. E, quais são os efeitos dessa combinação? Portanto, estamos agora tentando oferecer aos consumidores da Europa uma possibilidade para que essa soja possa ser melhor analisada e se ela poderia ser mais sustentável. E isso poderia significar que teríamos dado um passo adiante nesta fase de transição. Pois sabemos que esta fase de transição também implica em custos mais elevados. E, é por isso que a atual forma de produção de soja continua sendo mantida, porque ela é mais barata. E como poderíamos reduzir essa dependência proteica de tal forma — e para isso é muito importante que os governos nos ajudem — que possamos sair dessa armadilha dos custos? Como eu disse antes, o primeiro passo importante seria, pelo menos, acabar com as importações de agrotóxicos de países que já provaram que eles são prejudiciais. Que esses produtos não possam mais ser exportados para o Brasil. Eu posso apresentar isso de uma forma mais precisa e detalhada: a BASF possui atualmente 13 desses princípios ativos sendo comercializados no Brasil e a Bayer tem 12. Como essas substâncias podem ser vendidas aqui se não são autorizadas na Alemanha? Para mim, parece evidente que isso não deveria acontecer. Mas essas empresas continuam afirmando que isso tem a ver com a existência de climas diferentes no Brasil e que aqui não haveria outra maneira de produzir. Esse talvez seja o pior dos argumentos. Se imagina que o uso de agrotóxicos estaria condicionado pela natureza. Essa situação não foi criada pela natureza; ela foi criada por seres humanos! Foi assim que os agrotóxicos passaram a ser usados a tal ponto na produção de alimentos. E, não faz muito tempo que as pessoas sequer precisavam deles e, talvez, viveram de forma mais saudável. Este é o passo que precisamos dar para nos alimentarmos de forma mais saudável, para produzir de forma mais saudável e, talvez, também para contribuir com o clima neste Planeta!

Angela Küster: O senhor poderia apenas mencionar brevemente mais um problema: não somente os agrotóxicos retornam para cá, mas também muita água é transferida. Então, através do cultivo da soja, são necessárias grandes quantidades de água, que circulam nessa produção e que acaba aqui. O senhor ainda tem os dados sobre quanta água está envolvida nisso? Como se pode imaginar isso?

Antônio Andrioli: Eu realizei alguns cálculos envolvendo as exportações brasileiras. E, então, eu cheguei à conclusão de que daria para abastecer 2 bilhões de pessoas com água potável, apenas considerando o que o Brasil exporta de soja. Ou seja, a água necessária para produzir as 68 milhões de toneladas que exportamos. Exportamos uma quantidade de água que poderia abastecer 2 bilhões de pessoas no mundo. Este é um recurso que também precisa ser levado em conta. São as famosas externalizações de custos. O custo da água para produzir soja não é calculado no Brasil. E, talvez os consumidores nem levem isso muito a sério. E especialmente na água também há uma contaminação.

Angela Küster: E uma grande parte da população brasileira quase não tem acesso à água. Então, isso também precisa ser considerado…

Antônio Andrioli: Exatamente. Em muitos lugares do Brasil ainda temos problemas não só com a falta de água, mas também com a dificuldade de acesso à rede de esgoto. Não temos sequer estes padrões mínimos que se imagina para não causar novas doenças. Portanto, em relação à contaminação da água, eu mencionei aqui os agrotóxicos, mas não é só isso. Os agrotóxicos são um tema muito atual por aqui, porque o Ministério Público também já determinou a realização de análises na água de muitos municípios. Foi constatada a existência de 27 diferentes agrotóxicos na água da maioria das nossas cidades. Esses 27 agrotóxicos, portanto, integram a lista completa do que está previsto no Brasil. Poderíamos também pesquisar isso mais além. Assim, todos os agrotóxicos que estão previstos nas solicitações de análises de água foram encontrados em mais de 500 cidades apenas no estado de São Paulo. Portanto, é um absurdo o que temos de agrotóxicos por aqui. Mas não se trata apenas de agrotóxicos. Trata-se também de outras formas de contaminação. Eu acabei de me referir à falta de esgoto adequado, mas temos também a catástrofe da destruição dos nossos rios. Temos uma redução da água disponível no Brasil devido ao desmatamento. Portanto, temos cada vez menos água. E isso também é uma questão importante para o futuro. Como iremos lidar com isso se agora já precisamos cada vez mais irrigação para as monoculturas? Há também os custos adicionais que precisam ser levados em conta. Então, o que isso significa, se tivermos menos água? É muito importante registrar que a maioria das pessoas que não possuem acesso adequado à água potável residem nos bairros mais pobres e também no meio rural. E, é claro que também isso é um grande problema!

Angela Küster: Sim, mas o Brasil, como grande país agrícola, não tem somente dados negativos na agricultura. Ele também tem um enorme movimento em favor da Agroecologia. Isto vem acontecendo há algumas décadas. Eu creio que desde os anos 1990. Portanto, o Brasil desenvolveu uma concepção de Agroecologia completamente diferente da que temos hoje na Alemanha, na qual ela é tratada mais como um método tecnológico de cultivo que, de alguma forma, estaria integrado à agricultura ecológica. No Brasil, isso é completamente diferente. A Agroecologia já foi anunciada como um paradigma científico. Ela é ensinada em universidades como a sua, como disciplina, e se tornou um amplo movimento no campo, no qual participam muitas ONGs e organizações de pequenos agricultores. E até se tornou um programa do governo, sob o Governo Lula, que infelizmente não progrediu tanto sob o Governo Bolsonaro. Qual é a situação da Agroecologia?

Antônio Andrioli: Sim, nós fomos bastante longe, por 12 anos, podemos assim dizer. Você mencionou agora o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO), que também estava ligado a outros programas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que compra alimentos diretamente dos agricultores. E depois também com o Programa Nacional de Alimentação Escolar, o PNAE, que prevê, que 30% — um terço — de todos os alimentos que vão para escolas e instituições públicas sejam adquiridos diretamente dos agricultores locais e de suas cooperativas. Nós também praticamos isso na Universidade. Assim, os cinco refeitórios que temos — o sexto está sendo construído —, compram diretamente dos agricultores da região. Isso também é muito importante quando se estabelecem padrões, por exemplo, que esta produção, que agora vai para instituições estatais, poderia ser 100% orgânica. Ainda não chegamos lá. Ainda nem temos a possibilidade de comprar 30% apenas de produtos orgânicos, pois eles ainda não são produzidos. Então, quanto poderíamos produzir em decorrência deste programa? É claro que o Governo Federal reduziu todos esses programas. Mas em nível estadual há algum progresso, também aqui em Santa Catarina. E também as prefeituras, elas mesmas podem organizar isso. E é muito importante que continuem fazendo isso, porque um dos maiores problemas da Agroecologia é que não criamos uma estrutura adequada para a comercialização dos produtos. Porque a estrutura de comercialização ainda se baseia em monoculturas, como a soja. E não é possível mudar isso tudo de um ano para o outro. Mas as universidades estão trabalhando nisso. E também é muito importante isso que você disse antes, que aqui, Aagroecologia já é reconhecida como uma ciência. Mas não se trata apenas de ciência. O caminho é o contrário daquilo que aconteceu na chamada Revolução Verde. Portanto, a origem da Agroecologia é, antes de tudo, uma prática dos agricultores e dos povos indígenas. Aqui na região ainda há muito conhecimento que foi preservado. Porque a chamada Revolução Verde foi destinada aos grandes produtores rurais. Esses pequenos agricultores permaneceram marginalizados. E eles resistiram e mantiveram esse conhecimento. E, a partir daí, surgiu um movimento. E, então, esse movimento também veio para a universidade: através do caminho inverso. Agora isso está voltando da universidade para um novo movimento: um movimento científico, político e social de Agroecologia. E esse movimento fortalece o conhecimento básico dos agricultores e o conhecimento tradicional dos povos indígenas. Agora isso vem sendo combinado. Com a Revolução Verde isso foi diferente. Eram realizadas tentativas de apresentar experimentos de campo nas universidades para provar como a produtividade poderia aumentar. Esse era o grande objetivo: produzir mais em uma área. E isso foi se tornando um movimento na assistência técnica, constituindo toda uma rede de extensão rural. Eu mesmo fui um desses técnicos agrícolas nos anos 1990, tentando aplicar essa extensão rural de acordo com os ideais da chamada Revolução Verde. Em outras palavras, se ensinava aos agricultores como eles poderiam utilizar insumos que eles realmente nem precisavam nessa proporção. E, assim, muitos recursos também acabavam sendo desperdiçados. E toda essa estrutura de dependência foi criada por governos. Assim como a estrutura de comercialização e a disponibilidade de crédito rural, cujos programas também estavam todos relacionados com políticas públicas. Portanto, a Agroecologia, que agora podemos apresentar como avançada, tem a ver com 12 anos de programas governamentais progressistas. Havia até mesmo um Ministério de Desenvolvimento Agrário que foi utilizado para isso. Nós sempre dizíamos que esse era o ministério para os pequenos agricultores e que o Ministério da Agricultura era mais direcionado aos grandes produtores rurais. Agora ele já nem existe mais. Tudo isso agora passou a ser integrado ao Ministério da Agricultura. Mas, em nível local, eu diria que em nível micro, ainda há muitas experiências sendo realizadas, porque esses 12 anos mostraram como isso pode funcionar. E talvez esse seja um bom exemplo para outros governos. Pelo menos nesse período de transição. Eu continuo enfatizando isso. Quando surgem problemas, tais como rendimentos mais baixos, custos de produção mais altos ou problemas técnicos, é importante que os agricultores sejam ajudados. E, especialmente para comprar a sua produção. Para que os preços não impeçam o seu desenvolvimento. Não se pode simplesmente deixar esses agricultores competirem com outros no período de transição. Pois nesse período de transição, ficou demonstrado que os programas de alimentação escolar ou a compra direta de alimentos dos agricultores por parte de governos podem retirá-los do mercado existente, vinculando-os a um mercado institucional, no qual eles podem produzir sob diferentes condições e serem recompensados pelos custos de conservação da natureza e da saúde da população. Isso vale a pena e é por isso que os municípios continuam adotando essas políticas públicas. E vimos que as crianças na escola e os estudantes na universidade também podem participar. Assim, uma vez que os refeitórios tenham adotado esse tipo de programa, os estudantes não querem voltar a ter outro tipo de alimentos. Eles sempre preferem os alimentos orgânicos. Já estamos até discutindo até que ponto podemos oferecer refeições veganas. Já temos a opção vegetariana. Agora já se trata de avançar para pratos veganos. Assim, as pessoas que normalmente não tinham acesso a esses alimentos, também podem participar. Eles voltam para casa e conversam com seus pais sobre isso. Eles relatam que experimentam na universidade o que há de melhor. Além disso, também há os mercados dos agricultores funcionando nas universidades. Isso também é muito importante. E isso precisa ser dito novamente com muita ênfase: mesmo durante pandemia, nós tivemos um aumento de produtos orgânicos no Brasil, tanto em termos de consumo como de produção. Tivemos 30% a mais de produção de produtos orgânicos durante a pandemia, porque foi possível chegar diretamente aos consumidores. Muitos estavam em suas casas, passaram a cozinhar mais e também surgiu a ideia de que se poderia escolher melhor os ingredientes para a alimentação. Então, foi criada uma rede entre consumidores e agricultores para a comercialização direta dos produtos. E, agora, sem o governo, mas seguindo o exemplo de governos. Se não houvessem esses 12 anos de governos, talvez não tivéssemos tido essa experiência. Porque, assim, também não teríamos agricultores em condições de produzir. Eles estavam preparados para produzir para as escolas. Mas as escolas, assim como as universidades, estavam fechadas em função da pandemia. E, assim, foram encontradas novas maneiras de comercialização. Ao retornamos completamente ao ensino presencial, temos ambos. Temos a comercialização direta e seguimos com o desafio de chegar a 30% de produção agroecológica para escolas e universidades. Este é um grande exemplo, que também mostra que a Agroecologia pode ser vivenciada pelas pessoas. Não se trata apenas de uma teoria. Por isso, sempre que eu tenho a oportunidade, eu costumo dizer aos nossos estudantes de Agronomia que eles aproveitem bem as refeições no restaurante universitário. Que lá eles poderão aprender muito mais sobre Agroecologia do que em minhas palestras! Porque eles podem experimentar por si mesmos. E, assim, eles também podem chegar à ideia de produzir por eles mesmos. Isso também é um problema. Muitos agrônomos não querem se tornar agricultores. Eles preferem se tornar consultores de grandes corporações agrícolas. Portanto, esses objetivos também podem mudar lentamente. Essa é uma maneira muito otimista de apresentar as coisas. E eu sempre digo que, geralmente, eu sou um pessimista na teoria. Eu fui muito influenciado pela Teoria Crítica e pela análise crítica das informações. Mas, aqui eu tenho algo para ser a favor. Eu tenho dito, muitas vezes, que é bastante cansativo ter sido contra os transgênicos por tanto tempo. E eu também posso ser a favor da Agroecologia por, talvez, uns 20 anos. E isso é muito mais interessante! Isso movimenta muito mais as pessoas. Esse otimismo move as pessoas quando ele passa a fazer parte das suas ações!

Angela Küster: Eu também estava tão entusiasmada com a Agroecologia que a transformamos em um projeto da União Europeia no Nordeste do Brasil. Trabalhamos com pequenos agricultores em três regiões em uma transição para princípios agroecológicos. Talvez você possa dizer algo sobre os princípios que são usados na Agroecologia, que são bem diferentes.

Antônio Andrioli: Eu sempre enfatizo isso aqui, de uma forma que seja compreensível para os agricultores. A primeira coisa que interessa aos agricultores na Agroecologia é que ela pode reduzir os custos de produção. Infelizmente, os agricultores, muitas vezes, foram considerados incapazes ou não dispostos a fazer cálculos. Como se eles não soubessem fazer contas em suas propriedades rurais. Nós temos aqui uma situação completamente diferente disso. Por exemplo, os agricultores percebem que, na produção de soja — e esta é uma situação bastante contraditória — é possível ter, em média, 43% menos custos de produção na soja orgânica. Ou seja, sem usar fertilizantes sintéticos e agrotóxicos. De forma bastante simples. Se essa produção pudesse ser inteiramente de forma agroecológica, ela nem seria mais exportada. Nesse caso, essa soja também poderia ser utilizada na alimentação humana e na criação local de animais. A segunda coisa muito importante para os agricultores — e isto também tem sido negligenciado com muita frequência — é que os agricultores realmente querem preservar o solo. Porque eles também querem que a próxima geração continue sendo agricultora. Isso é algo tradicional, algo tipicamente camponês. E é uma ideia de sustentabilidade. Portanto, é preciso manter o solo. E isso é muito importante, pois se o solo for saudável, as pessoas serão mais saudáveis e o ambiente também será saudável. Isso significa preservar os recursos naturais, mas também vale a pena do ponto de vista econômico. Os rendimentos aumentam. E haverá mais água no solo. Portanto, é uma questão de rendimento, mas não só. A terceira coisa importante é que teremos uma melhor remuneração do trabalho. O trabalho é melhor remunerado com a Agroecologia. É possível produzir muito mais, melhor e de forma mais saudável em pequenas propriedades rurais, em pequenas áreas. Isso é o que chamamos aqui de otimização de ecossistemas agrícolas. E, assim, tudo passa a estar integrado. O que pode ser melhorado? É claro que talvez se possa chegar à Permacultura. Toda esta conversa nos levaria bastante longe. E quais seriam as diferenças entre Permacultura, Agrofloresta e Agroecologia? Aqui tentamos integrar tudo com a Agroecologia. Talvez isso também seja um problema conceitual, quando você afirma que não se trata apenas daquilo que, na Alemanha, se chama de agricultura ecológica. Aqui isso é algo a mais. É uma combinação de diferentes formas de produção. E, o que indiquei como sendo um problema da agricultura convencional na primeira parte de nossa discussão, é importante considerar que, com a Agroecologia, podemos reduzir a necessidade de insumos externos. Ela se torna mais autossuficiente. Talvez também possamos avançar em direção à Agricultura Biodinâmica, na qual não dependemos mais de nada exterior à propriedade rural. Mas disso ainda estamos bastante distantes por aqui. Estamos realizando uma combinação, mas partes dela já estão mais avançadas. A redução de insumos externos, portanto, é muito importante, assim como a redução dos danos ambientais. O uso de menos agrotóxicos também representa uma melhor qualidade da água. E melhores rendimentos em longo prazo, não apenas de curto prazo. Esse também é um princípio de agricultura sustentável. Não se trata de ser capaz de produzir alimentos apenas em curto prazo. Possivelmente, no futuro, isso só será possível de forma agroecológica. E temos agora um outro aspecto da Agroecologia, que não é tão frequentemente considerado: o trabalho dos agricultores precisa de mais conhecimento. Não apenas dos conhecimentos tradicionais. E essa é nossa maior novidade aqui, pois agora temos uma universidade, conquistada pelos próprios agricultores. Uma Universidade Federal, mantida com 100% de recursos públicos. Com 1.500 servidores, com pesquisadores pagos pelo Estado. Não se trata de uma universidade qualquer. É uma universidade atuando em uma área do tamanho da República Federal da Alemanha. Temos um campus mais ao Norte, no Paraná (como se fosse em Hamburgo) e um bem mais ao Sul, em Cerro Largo (como se fosse em Munique). Isso, para os alemães poderem ter uma ideia das nossas distâncias entre os campi. Na fronteira com a Argentina. E, nestes 10 anos, temos uma melhor qualidade de vida nessa região, avançando na produção agroecológica. Como se pode medir a qualidade de vida? Podemos utilizar o famoso IDH das Nações Unidas, contatando um maior acesso de crianças às escolas, uma maior expectativa de vida da população, uma melhor distribuição de renda, mais pessoas com acesso a melhores empregos, assim como profissões que eram consideradas em extinção sendo novamente valorizadas. Esses são aspectos que podemos verificar como possíveis em uma perspectiva futura da nossa agricultura. A agricultura familiar e camponesa não é algo atrasado, mas sim, o que há de inovador e de sustentável. Assim, através da Agroecologia, podemos fortalecer a agricultura familiar e camponesa. E, isso, talvez seja algo completamente novo para o Brasil, porque até mesmo a palavra agricultor é bastante complicada em nosso País. Muitas pessoas me perguntam: os povos indígenas também seriam agricultores? Bem, eu nem sei se haveria agricultores na Europa que poderiam ser chamados de indígenas, como os da região de Schwäbisch-Hall, por exemplo? Talvez os suábios também sejam os indígenas de lá. Eu não sei. Mas, em todo caso, esse tradicional não é um obstáculo à inovação. Pelo contrário! Só criamos inovação a partir do tradicional, em combinação com o tradicional. E essa talvez seja também a novidade por aqui. Porque, como eu disse antes, a universidade agora pode colocar nisso o seu foco e concluir que isso também é ciência! E isso também fortalece as pessoas em sua autoestima, em suas atitudes e em sua motivação. Elas estão realizando algo que é sustentável. E essa talvez seja a grande lição de Agroecologia no Brasil neste momento.

Angela Küster: Exatamente. Também no Brasil, o campesinato tem sido descrito há muito tempo como atrasado e acabaria por desaparecer de qualquer maneira. Mas, os camponeses têm sobrevivido e mostram repetidamente que eles são os mais modernos que poderiam existir. E são também os mais jovens, assim com os seus descendentes, os que praticamente vão para a universidade? Os estudantes são de famílias de agricultores? Como ocorre a participação dos pequenos agricultores na universidade?

Antônio Andrioli: O que temos aqui é algo muito especial. 90% de nossos alunos são provenientes das chamadas escolas públicas. Essa é a maioria das nossas escolas aqui. Mas elas não têm o maior número de alunos nas universidades do Brasil. Sempre foram os das escolas privadas. E estes 90% também são importantes para nós, quando se observa o seu quadro geral. No Sul do Brasil, nós temos aqui o maior número de estudantes indígenas. Aqui, 87% das pessoas que ingressaram na Universidade em seu início são a primeira geração de suas famílias com acesso ao ensino superior. E, destas, mais de 60% são filhas e filhos de agricultores. Os agricultores podem participar de nossos conselhos e em todas as nossas comissões, mesmo na consulta para reitor e dos diretores dos campi. Essa experiência é tão promissora que eu decidi passar 10 anos da minha vida aqui participando disso. Eu fui nomeado pelo governo brasileiro para ajudar na construção dessa Universidade nos seus primeiros anos. Depois, fomos eleitos e, agora, com esse governo, infelizmente, saímos da direção da Universidade. Mas o que nós construímos não é apenas uma obra física. Na verdade, trata-se de uma concepção de universidade. Uma universidade conquistada pelos agricultores. E isso, às vezes, é difícil explicar. O que seria uma universidade pública dos agricultores? Sim, porque a maioria dos seus estudantes são agricultores ou filhos de agricultores, dos indígenas e da população local. Os próprios agricultores podem participar da tomada de suas principais decisões. Uma universidade pela qual eles mesmos lutaram durante mais de 40 anos! Estou falando da Via Campesina — a maior organização de camponeses do mundo inteiro, o seu maior movimento social do Brasil, o MST — e, junto com ela, a FETRAF, a federação da agricultura familiar daqui, dos pequenos agricultores. Eles todos se uniram e agora estão felizes porque não apenas seus filhos e filhas podem participar. Eles mesmos podem resolver talvez estudar Agronomia, talvez estudar Medicina, talvez estudar Nutrição… E que possamos integrar tudo isso e de uma forma interdisciplinar. Isso também é importante. A interdisciplinaridade é um princípio da Agroecologia. Porque a realidade é assim. A realidade não está dividida em áreas do conhecimento. Ela é um todo. E, voltar ao todo, é o nosso grande desafio. A ciência nos preparou muito bem para ir do todo em direção ao particular. Mas voltar ao todo e, depois, compreender as conexões de partes com as outras partes, é algo muito especial. E os agricultores e os povos indígenas ainda trazem isso com eles. Eles ainda veem a realidade dessa forma, porque não foram formados por uma ideia de redução da realidade ou pela ciência mecanicista. Poque não experimentaram tanto essa forma de ver a realidade. Precisamos reconstruir isso. E essa é a nossa grande tarefa aqui. Eu estou feliz porque, assim, talvez também possamos contribuir para a implementação dos assim chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Esse é um grande exemplo de como podemos tentar implementar isso aqui, também cientificamente.

Angela Küster: Isso soa realmente fantástico! Eu estou agora com muita vontade de conhecer essa Universidade. Vou tentar visitá-la no Sul do Brasil para ver como tudo isso funciona. A Agroecologia vive do diálogo entre as pessoas que praticam e trabalham na terra e os teóricos. Tudo isso de forma conjunta e interdisciplinar. A Agroecologia, portanto, realmente iniciou uma revolução nas Ciências Agrárias.

Antônio Andrioli: Mesmo em tempos de guerra, se você olhar dessa forma agora. Nós não víamos isso dessa maneira há 1 ano atrás. Tornou-se ainda mais importante produzir de forma agroecológica. A soberania alimentar também surgiu no período de pós-guerra, como um conceito, cientificamente falando. Os agricultores precisam ser capazes de produzir localmente, de forma sustentável, com poucos insumos e com energias renováveis. E eles mesmos têm que ser capazes de vender sua produção aos consumidores locais. De forma que se possa gerar renda localmente. Esse é o conceito da agricultura regional. De forma rural e regional talvez possamos agir globalmente. Estes são bons exemplos que nos mostram globalmente que este único Planeta Terra que temos pode ser preservado.

Angela Küster: Sim, isso é maravilhoso! Esse é um exemplo maravilhoso. Talvez o senhor queira dizer algo em forma de conclusão. E, então, eu acho que podemos chegar ao final.

Antônio Andrioli: Eu gostaria de agradecer por mais este espaço na Alemanha para divulgar essas ideias. São pequenas ideias. São também pequenos passos. Mas eu tenho certeza que são pequenos passos que estamos dando, diante da nossa situação, que também é tão problemática, politicamente falando, economicamente falando e ecologicamente falando. Esses pequenos passos decorrem de toda essa contradição. E eles são passos que nos mostram globalmente como podemos sair dessa nossa crise. Uma crise que também mostra que a nossa sociedade está doente. Nós precisamos também de uma outra forma de economia. Nós a chamamos de Economia Solidária. Portanto, a Agroecologia com a Economia Solidária tem futuro! Essas ideias não são tão novas. Mas elas são, talvez, muito importantes para as mudanças e todas as transformações que a próxima geração espera de nós. E nós temos que começar a implementá-las.

Angela Küster: Sim, é isso mesmo. Em cada crise também há uma oportunidade para grandes mudanças.

Antônio Andrioli: Muito obrigado!

Angela Küster: Eu também gostaria muito de agradecer pela conversa e que a conexão do Brasil para a Alemanha funcionou tão bem. E eu espero que todos tenham conseguido aproveitar algo desta conversa. Que passem a prestar mais atenção ao comprar alimentos e também naquilo que temos que pressionar o nosso governo para acabar com essas importações de ração à base de soja. Que isso simplesmente não pode continuar assim. Muito obrigado!

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