Desenvolvimento e cooperação internacional: a solidariedade ale-mã com base na realidade brasileira

Antônio Inácio Andrioli

 

A compreensão de política de desenvolvimento de uma instituição e o seu engajamento pressupõem um conceito de desenvolvimento, cujos princípios definem as alternativas e os métodos a serem introduzidos em determinado contexto, com o objetivo de modificar uma situação. De acordo com o EED – Serviço das Igrejas Evangélicas Alemãs para o Desenvolvimento – desenvolvimento é concebido como um processo de superação da fome, da pobreza, de doenças e de estruturas de poder que violam a dignidade e os direitos dos seres humanos e que impedem o seu controle sobre os recursos necessários à sua sobrevivência. Está claro que se trata de modificar a estrutura social, onde pobres, desfavorecidos e oprimidos devem ser apoiados. A pergunta fundamental, entretanto, é  como ajudar os “subdesenvolvidos” no seu desenvolvimento? Um aspecto importante no conceito de desenvolvimento do EED é a busca da participação das pessoas envolvidas nos processos decisórios, de forma que sejam capacitadas a melhorar suas condições de vida com responsabilidade e a partir de suas próprias forças. Nesta perspectiva, os objetivos, exemplos e visões do ponto de vista dos países do sul constituem parte integrante dessa concepção e, por isso, eu, como bolsista brasileiro do EED, tentarei expressar neste texto alguns comentários baseados na experiência do Brasil e que podem evidenciar alguns elementos importantes do ponto de vista do sul.

Há pouco tempo atrás, muitos acreditavam convictamente que desenvolvimento seria uma conseqüência do crescimento econômico. O objetivo de uma efetiva política de desenvolvimento deveria ser o crescimento do PIB – Produto Interno Bruto – sendo que a distribuição da renda sequer era questionada. A industrialização, alicerçada no modelo dos países industrializados, geraria maior riqueza e conseguiria impulsionar a saída de um país do contexto de “subdesenvolvimento”. A idéia parece muito simples: primeiro é necessário que o “bolo” cresca, para que, em seguida, possa ser distribuído. Países passaram a ser caracterizados como “em desenvolvimento” na expectativa de que venham a se desenvolver de acordo com o modelo dos “desenvolvidos”. E nisso os países desenvolvidos deveriam ajudar os “subdesenvolvidos”, indicando-lhes o melhor caminho para o sucesso.

O caso do Brasil ilustra muito bem o equívoco dessa concepção: enquanto o país ocupa a décima primeira posição mundial entre os países industrializados, em nenhum outro lugar do mundo o abismo entre ricos e pobres é tão grande. O crescimento econômico e do PIB de um país, portanto, não significam, automaticamente, maior desenvolvimento: o Brasil não é um país pobre, e sim um país injusto. No que se refere à política de desenvolvimento dos países industrializados (os quais indicariam o caminho), foi constatado que, por exemplo, o fim do protecionismo e dos subsídios agrícolas traria três vezes mais receitas para o país do que a soma de todos os recursos recebidos como ajuda ao desenvolvimento.

Em contraposição à concepção anterior, mais tarde surgiu o entendimento de que o desenvolvimento está relacionado à melhoria da qualidade de vida de um povo, um processo que, em tese, nunca será concluído, pois os seres humanos se desenvolvem constantemente e, com isso, suas condições de vida podem ser sempre melhoradas. Assim como o conceito de democracia, desenvolvimento é uma idéia regulativa, em cuja concretização a humanidade vai alcançando um maior nível de humanização. Essa compreensão está de acordo com a concepção de desenvolvimento do EED e apresenta como objetivo a emancipação dos seres humanos das estruturas de desigualdade, injustiça e alienação que os impedem de serem humanamente livres, no amplo sentido do termo. Com isso fica evidente a necessidade de mudanças tanto nos países industrializados como nos países “subdesenvolvidos” e que a unilateralidade nas relações da assim chamada ajuda ao desenvolvimento precisa ser superada mutuamente. O lema: “pensar globalmente e agir localmente” pôde ser superado, de forma que uma ação global se tornou possível, o que alterou a visão de mundo e os limites de tempo e espaço.

Nesse contexto, a organização em rede é fundamental e a mobilização contra o desmonte social na Alemanha também pode contribuir com os povos dos países “subdesenvolvidos”. Muitas ações que procuram atingir o núcleo da injustiça no mundo precisam ser implementadas em caráter internacional, como:

  • contra a dominação do capital financeiro;
  • o pagamento da dívida externa, que já foi paga várias vezes;
  • contra a concentração no setor alimentar, através de modificações no consumo e da influência sobre a política internacional;
  • pela afirmação dos direitos humanos;
  • pelo fortalecimento da cooperação e da solidariedade internacional.

Mas relações de cooperação internacional, é importante que sejam preservados os princípios da igualdade e de solidariedade, para impedir que se repitam as estruturas de dependência, típicas no diálogo entre norte e sul. A cooperação é, em última instância, um intercâmbio, no qual ambos os lados têm muito a aprender mutuamente. Quando algumas instituições alemãs expressam, por exemplo, que a Alemanha têm ajudado o Brasil, é importante lembrar que o Brasil também ajuda muito a Alemanha, como, por exemplo, através da remessa de lucros da Volkswagen, Mercedes, Bayer, BASF, etc, pois em torno de 1.200 empresas alemãs estão instaladas em território brasileiro e a região metropolitana de São Paulo é considerada como o maior parque industrial da Alemanha no exterior.

O desenvolvimento nos países industrializados se dá às custas dos “subdesenvolvidos”, onde a externalização dos custos de produção cumpre um papel importante, pois padrões sociais e  ambientais, na maioria dos casos, não são mantidos nos países “subdesenvolvidos” da mesma forma como ocorre nos países de origem das empresas. A dependência está alicerçada numa estrutura colonial e em estruturas de poder que, muitas vezes, impedem a autosuficiência dos povos do assim chamado Terceiro Mundo. No caso do Brasil, é importante lembrar que o modelo de desenvolvimento baseado no crescimento econômico elevou a dívida externa ao patamar de 300 bilhões de dólares e que a industrialização é responsável por parte da diminuição da biodiversidade e dos recursos naturais do país. Por isso, é importante que se tenha na Alemanha uma clara posição acerca dos problemas do desenvolvimento, que pode ser expressa através de:

  • uma intensa publicação da problemática, através do trabalho de publicidade;
  • uma forte pressão pela modificação das estruturas injustas;
  • uma efetiva influência sobre a política de desenvolvimento alemã;
  • um amplo apoio a iniciativas internas.

Por outro lado, é importante agir e pensar localmente, pois as necessidades das pessoas precisam ser supridas onde elas vivem, a problemática fica mais evidente no nível local e, por isso, é decisiva a participação de todos os envolvidos no processo de desenvolvimento. As estruturas de desigualdade e de poder também existem no interior dos próprios países “subdesenvolvidos”. Se no Brasil vivem 50 milhões de pessoas em estado de extrema pobreza (especialmente no meio rural) isso não ocorre somente em função da globalização e da política neoliberal em nível internacional, mas é uma conseqüência da concentração da propriedade da terra, da qual principalmente 27.600 latifundiários se beneficiam. A sociedade brasileira é marcada por uma estrutura elitista, na qual apenas 5% aumentam sua riqueza e onde o mercado interno contempla o acesso de apenas 40% da população. Nessa situação, importantes mudanças na injusta estrutura do mercado agrícola, por exemplo (como recentemente foram defendidas na Conferência da OMC em Cancún, no México), vêm a beneficiar, em maior parte,  os grandes proprietários rurais,  que produzem soja, cana-de-açúcar, café, algodão e cacau para fins de exportação, e não os pequenos agricultores, que produzem prioritariamente alimentos para o consumo próprio e o mercado interno. Este é um bom exemplo para mostrar que a eliminação de estruturas injustas entre os países, por si só, não elimina as estruturas injustas  internas aos países. Maiores exportações agrícolas contribuem, em última instância,  para que o Brasil possa continuar pagando os juros da dívida externa e têm grandes impactos sociais e ambientais dentro do país.

As estruturas injustas precisam ser, portanto, eliminadas, ao mesmo tempo, em nível global e local e uma reforma agrária massiva e qualificada é decisiva para impulsionar mudanças em benefício da maioria da população brasileira. Se a eleição de Lula despertou enormes esperanças de mudanças sociais e políticas no país e se teve o apoio de inúmeros movimentos sociais, é exatamente agora o momento decisivo de apoio à formação e à organização da sociedade civil, pois a participação da população na política nacional ainda é embrionária e deve constituir o centro do apoio da solidariedade internacional. Nessa perspectiva, são importantes as seguintes ações:

  • apoiar os movimentos sociais;
  • aprofundar a solidariedade com movimentos de sem-terra e de pequenos agricultores;
  • apoiar as campanhas pela implementação da reforma agrária;
  • criticar o modelo de reforma agrária de mercado;
  • influenciar o BMZ (Ministério Alemão de Cooperação Econômica e Desenvolvimento);
  • apoiar a agricultura ecológica e campanhas contra as criações intensivas de animais;
  • influenciar a política mundial de comércio em benefício dos pequenos agricultores;
  • apoiar campanhas da ATTAC (Ação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos)  e contra a OMC  (Organização Mundial do Comércio).

Quando se trata de projetos nos países “subdesenvolvidos”, o desenvolvimento deve ser entendido como um processo endógeno, no qual a forma como se concebe a construção do conhecimento é um elemento importante. Como nosso famoso Paulo Freire constatou em suas pesquisas, a transferência ou transmissão de conhecimento não é possível, pois ou se trata de apropriação do conhecimento ou haverá um processo de dominação em curso: sem pesquisa própria, sem práxis, os seres humanos não podem ser verdadeiramente humanos. O apoio internacional na área do conhecimento é, no entanto, importante para a formação de saberes competentes e o desenvolvimento de tecnologias apropriadas. Além disso, a cooperação internacional dá ânimo e energia às organizações e pode contribuir para que mais pessoas sejam capacitadas a participar de decisões que afetam suas próprias necessidades. Com base no exemplo da reforma agrária, isso pode ser expresso de forma ainda mais concreta, como apoio à organização nos assentamentos através:

  • de projetos de formação, assistência técnica, pesquisa em agricultura ecológica e na construção do conhecimento (com vistas à superação do “latifúndio do conhecimento”);
  • do apoio à construção da agroindústria cooperativa e da estrutura de comercialização da produção agrícola, que permita aos agricultores uma maior independência das grandes empresas que dominam o complexo agroindustrial.

Para concluir, é importante reforçar que, com exceção das diferenças culturais, sociais e políticas, há interesses comuns e necessidades de mudança em todo o mundo, o que evidencia que a própria cooperação internacional é um processo educativo, no qual concepções, objetivos e visões são modificadas mutuamente. O Fórum Social Mundial, que foi realizado três vezes em Porto Alegre (e neste ano aconteceu na Índia), demonstrou a importância de preservar a diversidade na organização em rede e, apesar disso, apontar objetivos comuns. Na política internacional de apoio ao desenvolvimento também parece ser muito importante que se constitua uma rede internacional de diferentes organizações com os mesmos objetivos, de maneira que a ação global e local seja alcançada. Para isso, o mútuo diálogo entre organizações parceiras do norte e do sul não deveria ser somente um meio de fortalecimento da cooperação, mas a base para a formulação das concepções, dos objetivos, métodos e visões de desenvolvimento.

 

* Artigo publicado na Revista Espaço Acadêmico em 2004