A nova lei de biossegurança: o governo Lula derrota a si mesmo

Antônio Inácio Andrioli*

Após o governo brasileiro ter liberado, excepcionalmente, por três vezes consecutivas a soja transgênica (através das Medidas Provisórias 113, 131 e 223), em 2005 foi aprovada a assim chamada lei de Biossegurança, com a qual se espera que o debate jurídico iniciado desde 1996 seja encerrado. Importante na nova lei é que a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio – saiu tão fortalecida que ela assumirá sozinha a competência pela liberação da pesquisa e do plantio de transgênicos. O governo Lula, que várias vezes se comprometeu em agir com cautela em relação a esse tema e em resistir ao poder da multinacional  Monsanto, mudou sua posição em dois anos de tal forma que ele mesmo é, em boa parte, responsável pela aprovação de uma lei que, basicamente, institui o contrário do que se propunha originalmente. Quais são os principais elementos para compreender como o governo brasileiro modificou sua posição sobre os transgênicos?

A soja é o principal produto de exportação do Brasil e contribui fortemente para a melhoria da balança comercial do país. No último período houve uma rápida expansão do cultivo de soja no Brasil: em 1993 eram cultivados 10,6 milhões de hectares e em 2003 já se atingiu a área total de 18,5 milhões de hectares. A safra de 2003 totalizou 52,2 milhões de toneladas, sendo que em 1993 se atingiu 18,5 milhões de toneladas. A exportação de soja rendeu, em 2003, 6 bilhões de dólares e, em 2004, 8 bilhões de dólares em divisas ao país. A balança comercial positiva é importante para o pagamento da dívida externa. O entusiasmo com o agronegócio e a estabilização da balança comercial externa, ambos diretamente relacionados, integram a concepção de governabilidade do governo brasileiro.  

A priorização das agroexportações não é nova na história do Brasil. Ela adquire, no entanto, um novo significado após o governo de Fernando Henrique Cardoso que, especialmente em seu primeiro mandato, apostava na privatização e na atração de investidores estrangeiros para estabilizar a economia. A redescoberta e o fomento a uma política de desenvolvimento baseada em exportações agrícolas e para a qual o livre mercado é visto como uma oportunidade, não reolve o dilema da vulnerabilidade externa da economia brasileira, pois os altos juros praticados conduzem a um crescente endividamento. Somente no ano de 2004 o Brasil pagou 55 bilhões de dólares em serviços da dívida externa e os resultados iniciais positivos apresentados pela balança comercial externa não são suficientes para solucionar o problema.  A expansão do cultivo de soja que, segundo autoridades brasileiras, pode chegar a  90 milhões de hectares em 2020 (atingindo inclusive  parte significativa da mata amazônica), pode ser compreendida na perspectiva dessa estratégia macropolítica, na qual há pouca sensibilidade com  riscos e conseqüências ambientais.  A soja transgênica é vista como uma oportunidade de cultivar extensas áreas de terra com baixa utilização de mão-de-obra e, nesse aspecto, o governo conta com o apoio dos produtores de soja, especialmente dos grandes proprietários de terras, o que, novamente, reforça a concepção de manutenção da governabilidade.

De acordo com a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225, os transgênicos só podem ser liberados se houver um Estudo de Impacto Ambiental comprovando a inexistência de riscos para o meio ambiente. Esse é o argumento central no debate jurídico acerca da soja transgênica, pois, até o momento, o Estudo de Impacto Ambiental não foi apresentado e a CTNBio, na qual a maioria é favorável aos transgênicos, tem se baseado somente em relatórios da própria Monsanto para liberar a pesquisa e o plantio. As liberações que ocorreram até agora foram processadas com sucesso pelo IDEC – Instituto de Defesa do Consumidor – , pois a decisões tomadas são inconstitucionais tanto em função da ausência de estudos como pela constatação de que a CTNBio não constituía um órgão competente para efetuar a liberação. A nova lei de biossegurança não altera a inconstitucionalidade do cultivo trasngênico existente, com a novidade de que, agora, a CTNBio é o órgão responsável pela liberação da pesquisa, cultivo e comercialização de transgênicos. Esse é, em síntese, o principal conteúdo da nova lei: 1) o plantio da soja transgênica está permitido por lei; 2) a CTNBio passa a ser o órgão que decide sobre a liberação de transgênicos; 3) estão revogadas todas as disposições anteriores sobre o tema após a entrada em vigor da nova lei. A lei de Biossegurança fere, de qualquer maneira, três princípios do Direito Ambiental, sobre os quais o texto legal sequer faz menção: a precaução, a sustentabilidade e a indenização. Neste sentido, continua valendo o direito de contestação das decisões da CTNBio, do qual o Conselho de Ministros pode fazer uso, assim como a possibilidade de recorrer judicialmente contra as decisões tomadas. 

A forma como o governo mudou de posição com relação aos transgênicos é paradoxal. Na campanha eleitoral ele se pronunciava veemente contrário à liberação da soja transgênica. Por ocasião da primeira Medida Provisória se fazia uma menção de que tratava-se de uma exceção, com o objetivo de regulamentar a comercialização da soja transgênica, cultivada no governo anterior.  Com a segunda Medida Provisória, também o plantio transgênico foi excepcionalmente liberado, o que permitiu a legalização do contrabando de soja vinda da Argentina.  A terceira Medida Provisória está relacionada à discussão do projeto de lei sobre Biossegurança em outubro de 2004, visando novamente o anúncio de uma garantia excepcional aos agricultores de que estes não correriam riscos com o plantio da soja transgênica antes da nova lei entrar em vigor.  Mas, no que se refere à lei de Biossegurança, havia dois projetos que se excluíam mutuamente. Após a edição da terceira Medida Provisória os Ministérios do Meio Ambiente, Desenvolvimento Agrário e Saúde reagiram no interior do governo, exigindo que na nova lei a liberação dos transgênicos fosse de responsabilidade de um Conselho de Ministros e que a CTNBio tivesse uma função mais decisiva somente na pesquisa e como órgão emissor de pareceres técnicos. Esse projeto de lei foi, de fato, formulado nessa perspectiva e aprovado na Câmara dos Deputados. Impressionante, no entanto, é que no Senado o líder do PT apoiou um outro projeto, diferente do projeto do governo, no qual a CTNBio é responsável pela liberação dos transgênicos. A conseqüente mobilização no PT e no interior do governo em favor dessa segunda versão contribuiu para a aprovação do projeto que, em função das alterações feitas, teve de voltar à Câmara dos Deputados para a decisão final. Na votação final, foi incluída no Projeto de Lei a liberação de pesquisas com células-tronco, o que contribuiu para confundir ainda mais o debate e aumentar a possibilidade de aprovação, que atingiu 85%.  Dos 79 deputados do PT que estiveram presentes no plenário (no total são 513 deputados, dos quais 91 da bancada do PT), sobraram somente 21 petistas que continuaram contrários à liberação da soja transgênica. O governo e o PT conseguiram a façanha de votar contra seu próprio projeto e, com isso, fortalecer  uma comissão (onde se pode supor que muitos membros possuem relações de interesse muito próximas à Monsanto) de tal forma que ela parece estar com poderes superiores à Constituição Federal.

A base social desse governo sofreu mais uma dura derrota com a aprovação da lei de Biossegurança e o PT deu um passo a mais rumo à descaracterização de sua identidade programática. O governo, assim como ocorreu recentemente, por ocasião da dura derrota sofrida na escolha do Presidente da Câmara dos Deputados, novamente não tem o que comemorar. Com sua estratégia de adaptação e de recusa em confrontar as elites, ele assume uma função ideológica de desmobilização social através da esperança que ainda desperta na sociedade e com a sua derrota contribui para a manutenção da tradição autoritária, populista e fisiologista da política brasileira.

 

*  Doutorando em Ciências Sociais na Universidade de Osnabrück – Alemanha.

 

Revista Espaço Acadêmico 2005