O lugar das ciências humanas na universidade

Antônio Inácio Andrioli*

A universidade é reconhecida, a priori, como o lugar da produção e da reflexão crítica do conhecimento. Entretanto, com a crescente subordinação da vida acadêmica à lógica do mercado, a reflexão crítica vem perdendo espaço para a mera “profissionalização” da força de trabalho e a fragmentação dos saberes e a mera reprodução de conteúdos e de padrões de pesquisa são cada vez mais comuns na vida acadêmica. Com a centralidade na “especialização” do conhecimento e a sua desconexão com o mundo real, que não pode ser dividido em disciplinas, a universidade perde sua identidade mediadora e de crítica radical dos saberes. Diante da emergente necessidade de oferecer cursos cada vez mais atrativos a um concorrido mercado de trabalho e da relativa ilusão de inclusão social através do título acadêmico, a universidade está confrontada com o dilema de se adaptar à lógica em curso sem, no entanto, descaracterizar-se como instituição. 

As ciências humanas, com seu acúmulo histórico e pela sua característica reflexiva e problematizadora da realidade social, assumem uma posição decisiva no processo de desmistificação e reintegração dos saberes. Mas, possivelmente, por não oferecerem uma clara tendência de reforço à “empregabilidade”, as ciências humanas são constantemente caracterizadas como inúteis à universidade. Além disso, como dizia um presidente da Max-Planck Gesellschaft[1], na Alemanha, as ciências humanas seriam as responsáveis pela construção das ideologias do nosso tempo, as quais teriam fundamentado os maiores crimes da humanidade. Somente as ciências naturais, em sua “objetividade e neutralidade” é que poderiam contribuir para o avanço do progresso humano.

Na era da “globalização”, justificada pelos avanços tecnológicos, o papel da ciência e da tecnologia volta a ser discutido num novo contexto. Num período marcado pelo predomínio da técnica, o conflito entre ciências naturais e ciências humanas retoma a atualidade do problema da ideologia inerente ao positivismo científico. O histórico dilema entre técnica e filosofia volta à tona e atinge seu ponto crucial diante do desafio da formação acadêmico-profissional na universidade. Nesse contexto, qual é a atualidade das ciências humanas na universidade?   

 

No “mundo globalizado”, a suposição de existência de uma ciência neutra e livre de condicionamentos ideológicos, continua atual. O número de adeptos a um apoio incondicional à ciência e à tecnologia como portadoras naturais do progresso para a humanidade vem crescendo paulatinamente, assim como o repúdio a aqueles que procuram manter uma postura crítica em relação ao desenvolvimento científico e tecnológico. A polêmica parece nova, mas é tão antiga quanto a idéia moderna de ciência. Na tradição herdada do positivismo, a ciência é concebida como autônoma e isolada dos conflitos sociais. Sua hipótese básica é de que a sociedade humana funciona com base em leis naturais invariáveis, neutras e, portanto, independentes da ação humana. As classes sociais, as posições políticas, os valores morais e as visões de mundo dos sujeitos envolvidos são encarados como empecilhos à objetividade científica e o pesquisador deve se esforçar para eliminar estas influências do meio social na sua pesquisa. Mas, como o pesquisador pode evitá-las, se ele é um ser social imerso na realidade, se a delimitação do seu objeto de estudo, as perguntas que faz e as interpretações que desenvolve já são influenciadas por sua história de vida, seus valores e sua visão de mundo?

A divisão entre as ciências humanas e o conhecimento técnico é bastante antiga. Desde o início da filosofia, com os gregos, a sobrevalorização da atividade intelectual especulativa se dá em detrimento da importância do trabalho produtivo, da atividade prática do ser humano. Os filósofos se dedicavam exclusivamente à contemplação, ao debate de idéias e desprezavam o envolvimento prático com o mundo, que era função delegada aos escravos. Aristóteles foi explícito quanto a isso em sua obra A política: “aquele que pode antever, pela inteligência, as coisas, é senhor e mestre por natureza; e aquele que com a força do corpo é capaz de executá-las é por natureza escravo” (ARISTÓTELES, 1999: 144).

O desprezo da técnica por parte da filosofia antiga esteve inserido num contexto histórico e passou a ser reproduzido por muitas gerações. Com a Idade Média, novamente a técnica é colocada numa condição subalterna, assim como a ciência, que ficou impedida pela instituição religiosa. A dedicação primordial ao cultivo da fé, combinada com a rejeição ao mundo material, impediu o avanço do conhecimento. Com o desenvolvimento da técnica, a humanidade conseguiu construir instrumentos que asseguraram sua sobrevivência e permitiram uma maior qualidade de vida. Isso nos parece consensual e, portanto, é muito positiva a emergência da ciência experimental a partir da modernidade. O avanço tecnológico da atualidade permite um conjunto de facilidades e tem um potencial imenso para liberar o ser humano de atividades desgastantes e desnecessárias. Entretanto, percebemos que o predomínio da ciência, positivo em contraposição às crenças, o espontaneismo e a mera especulação acerca da realidade, tem resultado numa absolutização e mistificação dela mesma. Além disso, a cosmologia moderna, surgida a partir da ciência, tem provocado uma maior exclusão social e destruição do meio ambiente, uma vez que a cultura técnica deixou de estar centrada no ser humano para se basear na lógica da máquina: “a ciência moderna e contemporânea transforma a técnica em tecnologia, isto é, passa da máquina-utensílio à máquina como instrumento de precisão, que permite conhecimentos mais exatos e novos conhecimentos” (CHAUÍ, 1995: 284).

A centralidade na técnica reforçou a idéia de neutralidade da ciência e a crença no progresso técnico ilimitado, constituindo uma poderosa ideologia a serviço da dominação. Segundo os filósofos da Escola de Frankfurt, a racionalidade ocidental desenvolveu a instrumentalização da razão, levando à ideologização e mitologização da ciência. O que estamos afirmando, portanto, é que no período moderno, a técnica é que passou a ser o centro da produção do conhecimento, confundindo-se com a ciência e desprezando a filosofia. A dicotomização continua e agora se concentra no pólo oposto, operando em favor da dominação e impedindo, novamente, a emancipação do gênero humano através do conhecimento. A alienação do ser humano pela técnica na sociedade moderna nos insere perfeitamente na lógica da economia capitalista que reduz a cultura técnica à máquina e subordina os seres humanos à condição de força de trabalho.

A lógica de desvalorização da técnica dá lugar à supervalorização da mesma. Contudo, a “preparação técnica” segue sendo oferecida para os trabalhadores, com o objetivo de inserí-los no mercado de trabalho, já não acessível a todos e, portanto, limitada aos “mais competentes”. A formação humanística, originalmente de “propriedade da aristocracia”, com a sociedade capitalista, passa a ser  apresentada como “sem utilidade” para a maioria da população. O senso comum reproduz essa lógica e procura se adequar à “preparação ao trabalho em disputa”. A procura pela universidade, em termos gerais, parece que se dá, prioritariamente, em função da necessidade de titulação para ingresso no mercado de trabalho e não necessariamente pela busca da competência científica. Isso parece explicar, em parte, a grande procura por universidades e, enfim, pela educação em geral ultimamente. É nessa compreensão que os liberais têm defendido a educação como fator de inclusão social e desenvolvimento econômico. E, por mais que uma universidade procure negar, a sua organização como um todo também passa a ser gradativamente condicionada pelo mercado, sua lógica e suas demandas. Diante de tal público, que prima pela profissionalização, o conjunto da formação humanística tende a ser concebida como acessória quando não é tida como “atrapalho”. Entretanto, apesar da expectativa da maioria do público universitário, na sociedade de mercado permanece a “ideologia da competência”, que parece não estar resolvida com a centralidade na técnica.

Essa reflexão, em torno do poder que está implícito no positivismo científico e na “apologia tecnológica”, merece um lugar privilegiado para as ciências humanas. Problematizar criticamente a importância da técnica na sociedade e dos pressupostos da ciência positivista nos parece uma função insubstituível das ciências humanas na universidade nos tempos atuais. Mas, pensamos que isso deva ser realizado a partir de cada área do saber, procurando estabelecer a relação entre as especificidades de cada área com o contexto global do conhecimento e da sociedade. Se a separação entre filosofia e técnica constituiu parte de uma estratégia de dominação, a partir da divisão de classes, cabe então defender, na universidade, uma proposta unitária do conhecimento. Quando nos referimos à formação profissionalizante na universidade, estamos tratando diretamente do trabalho, da produção dos sujeitos que freqüentam os diversos cursos. É claro que nem todos estão empregados, mas é evidente que todos trabalham, visto que o próprio estudo também é trabalho. O que queremos enfatizar é que, também na universidade, é fundamental que estabeleçamos uma relação politécnica ao conhecimento, ou seja, que a formação profissionalizante deva ser direcionada à amplitude cada vez maior que o trabalho assume na sociedade.

Assim, ao invés de partirmos de uma formação geral, para posteriormente irmos “especializando” no sentido da fragmentação, entendemos que um verdadeiro especialista é aquele que do interior de uma área de conhecimento consegue construir relações com conhecimentos mais amplos e diversificados. Esse é um conhecimento “especial”, pois depende de uma profunda interação de saberes. Diante da sociedade contemporânea em que algumas profissões já passam a ser consideradas supérfluas, cabe à universidade estar atenta ao fenômeno da exigência do profissional com domínio de competências múltiplas, não se tratando simplesmente de uma exigência do mercado capitalista, mas de um direito do ser humano como sujeito integral e não fragmentado diante do conhecimento. Paradoxalmente, atualmente o capitalismo passa a exigir essa condição que Marx e Engels propuseram para o socialismo: “Na sociedade socialista, o trabalho e a educação estarão combinados, de tal forma que se assegurará uma educação politécnica muito variada, bem como uma base prática à educação científica” (MARX/ENGELS, 1978: 98).

O profissional também é cidadão e, portanto, é necessário oportunizar na universidade o exercício da democracia em todas as suas instâncias. Isso passa, necessariamente, pela discussão do caráter público da universidade e sua relação com os diversos movimentos e organizações sociais. A universidade como espaço de poder e sua influência na luta política é um eixo temático que pode conduzir à reflexão em torno do envolvimento social dos acadêmicos. O acúmulo histórico das ciências humanas pode contribuir significativamente com a reflexão sobre a democracia, assim como entendemos que a ética é de uma relevância muito grande, principalmente ao tratar da ciência e tecnologia. A implicância ética da pesquisa científica atual, principalmente com a biotecnologia apoiada na engenharia genética, a robótica e a telemática precisam ser discutidas com a mais ampla publicidade crítica e a universidade, como espaço público, deve privilegiar esse debate. Entendemos que as ciências humanas devem participar centralmente na problematização dessas questões, numa tentativa de quebrar a linearidade como tem sido abordado o conhecimento científico, procurando construir um relativo distanciamento da realidade para permitir uma intervenção mais crítica e qualificada dos universitários nos debates cotidianos.

Para finalizar, entendemos que as ciências humanas, diante da formação acadêmico profissional na universidade, têm o desafio de refletir radicalmente o significado do conhecimento, da cultura humana e, em especial, da própria ciência. O reconhecimento de que a ciência é apenas uma das linguagens acerca do mundo, possibilita uma formação mais ampliada dos profissionais que, antes de tudo, são seres humanos, produtores de cultura. O aprender a pensar é tarefa de todos que constróem conhecimento e o domínio de um discurso crítico, além de ser uma exigência para a universidade, é uma característica de humanidade que desenvolvemos ao longo da história, através da linguagem.

 

Referências bibliográficas:

ARISTÓTELES. A Política. Livro I. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia.  São Paulo: Ática, 1995.

MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Crítica da Educação e do Ensino. Introdução e notas de Roger Dangeville.  Lisboa: Moraes editores, 1978.

 

* Doutorando em Ciências Sociais na Universidade de Osnabrück – Alemanha.

[1]Antiga Kaiser-Wilhelm-Gesellschaft, que realizou os primeiros experimentos com gases tóxicos. Após a II Guerra Mundial o nome da instituição foi alterado e hoje é a mais importante das fundações alemãs dedicadas à pesquisa científica.

 

La Revista Iberoamericana de Educación es una publicación editada por la OEI – 20066