A Ideologia do “Atraso”

Os defensores do pensamento único, que contam com a hegemonia dos grandes meios de comunicação, têm adotado uma ofensiva ideológica unificada de desqualificação de qualquer teoria que possa se confrontar à lógica liberal em curso. A expressão mais explícita desse fenômeno tem acontecido em torno da realização do Fórum Social Mundial em Porto Alegre. O que se percebe é que, diante do emergente movimento de contestação mundial do neoliberalismo, os defensores do capitalismo logo se apressaram em dizer que a base teórica de seus oponentes é do “culto ao atraso”. Assim, ao invés de afirmar sua posição com argumentos a seu favor, o procedimento é inverso: a desqualificação do outro, na tentativa de impedir ou anular sua validade no debate.

Essa é uma atitude típica do totalitarismo, que não aceita a possibilidade do pensamento diferente ou contraditório na sociedade. É o que expressou claramente a imprensa conservadora ao criticar a organização do Fórum Social Mundial como “comando marxista”. Ora, se o pressuposto dessa imprensa fosse pela pluralidade de idéias, por que o marxismo não poderia ser admitido? Que novidade há no fato da teoria marxista também estar representada num encontro da esquerda mundial? Por que não contestam o “comando liberal” do Fórum Econômico Mundial que se reúne há mais de trinta anos? A explicação para o fato leva à formulação ideológica de que o marxismo representaria o “atraso”. Mas, é possível que uma teoria possa ser desmerecida por ser rotulada  de “atrasada”?

Num primeiro momento podemos questionar como seria possível medir o quanto uma teoria é “mais atrasada” ou “mais adiantada” que outra. Em segundo lugar, o que levaria alguém a crer que simplesmente “o que surge depois é melhor”? E, em terceiro lugar, mesmo que se admita a idéia do “quanto mais recente melhor”, o que é mais recente, o liberalismo ou a sua contestação?

Muitas das idéias que movem a humanidade contemporânea são muito antigas e, embora muitos nem saibam da origem das idéias que defendem, seu conteúdo continua muito vivo entre nós. Possivelmente nenhuma teoria “morre”, pois basta que a retomemos para lhe dar vida novamente. Isso está expresso na história e mostra que é muito perigoso afirmar o antigo coincidindo com o ruim. Não há nenhum critério racional possível para provar que a humanidade, necessariamente, caminha em direção ao “bom” ou ao “verdadeiro”. A história demonstra que a humanidade pode tanto avançar como regredir, o passado pode ter sido melhor que o presente, o futuro pode vir a ser pior que o presente e o passado, pois não podemos determinar o futuro, como parecem querer nos induzir os defensores do pensamento único da imprensa. Ou será que o nazismo foi melhor que a democracia grega só por que surgiu depois?

Entretanto, vamos, por ora, aceitar a premissa que supõe que o passado é ruim. Mas, a que passado eles se referem? Ao marxismo. E, adotando o critério da temporalidade, o que surgiu primeiro: o liberalismo ou o marxismo? A resposta está na história: o liberalismo. Se consideramos o início do liberalismo com John Locke, suas formulações teóricas são do final do século XVII e a Revolução Francesa, que consolidou os ideais liberais, ocorreu em 1789. O marxismo, no entanto, só veio a surgir muito mais tarde, pois Karl Marx nasceu em 1818, sua obra mais importante O Capital, foi publicada somente em 1867 e a primeira experiência inspirada no marxismo, a Comuna de Paris, ocorreu em 1871, sendo as demais do século XX. Portanto, o marxismo é muito recente e atual se comparado ao liberalismo e, se utilizarmos o argumento do suposto “atraso” propagado pelos liberais, os atrasados são eles mesmos.

É evidente que o interesse que move as afirmações da imprensa conservadora extrapolam qualquer intenção séria de debate, pois a teoria para eles nada mais é do que uma mercadoria a serviço de um sistema produtor de mercadorias que a sustenta e solicita legitimação. A informação passa a ser encarada como base da ideologia e, para isso, são utilizados instrumentos de convencimento que encontram terreno fértil no senso comum das pessoas. Para essa tarefa, há os que se prestam a criar idéias por mais imprecisas e confusas que sejam, pois não é sua validade que interessa, mas sua repercussão ou conseqüência.

Entretanto, apesar da tentativa de desmoralização por parte da imprensa, o movimento  de contestação ao liberalismo mundial está em curso e os liberais são obrigados a reconhecer a existência do Fórum Social Mundial, pois pelas dimensões que adquiriu, já não pode mais ser  menosprezado. Se nos inúmeros painéis, que acontecem simultaneamente, a presença dos marxistas incomoda os liberais, possivelmente o movimento de contradição instaurado favorecerá a construção de uma nova correlação de forças no mundo. A “ditadura do mercado” procura a todo custo negar essa possibilidade, mas já começa a colher os primeiros frutos de sua deslegitimação, em especial no Brasil.

A caricatura de “atraso” parece não ter sido suficiente para impedir o crescimento do movimento de crítica ao processo de exclusão instaurado pela mundialização do capital. Somente no Fórum Social Europeu, em Florença, 500 mil pessoas estiveram reunidas. O terceiro Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, promete ser o maior encontro das esquerdas de toda a história. São pessoas das mais diferentes culturas, crenças e tradições que preservam a utopia de construir a unidade entre trabalhadores de todo o mundo, como anunciava Marx no Manifesto Comunista. Pode ser que esta seja uma teoria de um “outro futuro possível” e, temendo isso, a direita logo se convenceu a rotulá-la de “atraso”.

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Artigo publicado na Revista Espaço Acadêmico – Janeiro/2003

http://www.espacoacademico.com.br/020/20and.htm