Soja transgênica no Brasil: a polêmica continua

Um dos principais conflitos do novo governo brasileiro é certamente a polêmica sobre a soja geneticamente modificada. Como o plantio transgênico se expandiu muito nos últimos anos e a soja será o maior produto de exportação do Brasil, o governo Lula foi duramente pressionado pelos grandes proprietários rurais antes da recente colheita. Até então, a comercialização e o plantio de soja transgênica estavam proibidos, mas o governo anterior intencionalmente não controlou e inclusive defendeu a situação irregular. Quase sem alternativas, o atual governo autorizou, excepcionalmente, a comercialização da safra deste ano, com a condição de que os agricultores se comprometam a não plantar mais soja transgênica no próximo ano. A discussão não está encerrada, tendo em vista que a venda desta safra ainda não está garantida e, a partir de abril do próximo ano, a comercialização novamente estará proibida. Por outro lado, os produtores de soja transgênica já se pronunciaram, afirmando que continuarão desobedecendo a lei e construindo uma articulação com os deputados para que o parlamento resolva o problema a seu favor. O que, afinal, está em jogo e porque muitos agricultores estão tão convencidos da propaganda das empresas fornecedoras de transgênicos?

A soja transgênica contém um gen que a protege dos efeitos nocivos do herbicida Roundup (marca comercial da Monsanto para o princípio ativo Glyphosate), o qual funciona como herbicida total (secante que, a princípio, elimina todas as plantas, com exceção das transgênicas). Com isso, é possível a aplicação do Roundup durante a fase de desenvolvimento vegetativo da soja, pois o herbicida elimina os assim chamados inços e preserva, seletivamente, a soja.  A soja “Roundup Ready” (marca comercial da variedade geneticamente modificada pela Monsanto) não é, de forma alguma, mais produtiva que a soja convencional, pois ela não possui nenhuma outra qualidade que possa diferenciá-la, com exceção da resistência ao herbicida. A vantagem, segundo os grandes proprietários rurais que a plantaram, é de que seria possível reduzir a quantidade de herbicida, economizando na aplicação do produto, o que poderia diminuir os custos de produção. 

A lógica desta tecnologia é a mesma usada na produção de soja convencional, já que ela está baseada na aplicação de herbicida e numa crescente dependência das empresas fornecedoras que, com isso, faturam duplamente: uma com a venda da semente e outra com a venda do herbicida. O que é velho surge com cara de novo e é apresentado como símbolo de progresso e modernidade. Quando se fala dos riscos, a discussão fica limitada a supostos futuros efeitos da manipulação genética sobre a saúde humana, os quais ainda não estariam confirmados. O perigo da dependência dos agricultores em relação ao monopólio das empresas, que certamente esperam um futuro pagamento de Royalties pela semente, e a incerteza na comercialização, pouco aparecem no debate.

Os efeitos do herbicida Glyphosate sequer são mencionados. Os representantes das empresas fornecedoras do produto alegam, inclusive, que se trata de um “medicamento” inofensivo para animais e seres humanos, o qual, em contato com o solo, se converteria em outras substâncias não tóxicas. Mas, na realidade, isso não confere. Glyphosate é uma substância química desenvolvida a partir do Agente Laranja, usado na guerra do Vietnã. Seus efeitos no Vietnã ainda hoje são visíveis, onde toda uma geração sofre de anomalias congênitas que afetam o normal desenvolvimento de seus braços e pernas. No início dos anos 1990 também foi constatado que o Glyphosate pode se combinar com os nitratos do solo, dando origem a uma nova substância: o nitrosoglyphosato, o qual pode ser responsável pelo surgimento de carcinomas (câncer) do fígado. Os efeitos sobre a saúde e o meio ambiente podem ser, ainda, mais prováveis se considerarmos que a maioria dos rios, fontes de água e solos estão sendo progressivamente contaminados com Glyphosate. Além disso, a transgenia permite que, no caso da soja transgênica, o herbicida seja aplicado sobre as plantas durante sua fase de desenvolvimento vegetativo, deixando resíduos nas plantas que podem repassar a contaminação aos grãos. E, no caso da soja transgênica, é óbvio que tenha sido usado Glyphosate  no processo de produção, cujos resíduos podem ser verificados em exames dos grãos. Neste sentido, o temor dos consumidores diante da transgenia pode ser compreendido, pois os riscos inerentes a essa forma de produzir não podem ser subestimados.

Por isso, o mercado europeu representou, até agora, o maior limite à expansão da soja transgênica. A produção de soja está direcionada à exportação e, se os consumidores reagem contrariamente à transgenia, o seu uso também deveria deixar de ser interessante. Esta é também a maior contradição de muitos defensores da soja transgênica, pois muitos cientistas, políticos e grandes proprietários rurais, que sempre recomendavam a agricultura voltada para o mercado, agora se vêem num beco sem saída criado pelo próprio mercado. Sua estratégia é o plantio ilegal e a manipulação da opinião pública através dos grandes meios de comunicação. Também é interessante observar como os grandes proprietários rurais estão se comportando com relação à legalidade, já que sempre se apoiam na lei para impedir as ocupações por parte do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Agora eles confrontam a lei e impedem, com armas, que o governo investigue suas plantações ilegais.

O supostos progressos da transgenia, assim como eles vêm sendo apresentados pelos fornecedores, também não estão firmemente fundamentados. Um exemplo é a comparação entre manipulação genética e informática, onde se procura enfatizar que teria sido um absurdo se a informática tivesse deixado de avançar em função dos argumentos contrários ao seu desenvolvimento. A pergunta que precisa ser feita é se o produto resultante dessa tecnologia será melhor ou pior. No que se refere à soja transgênica, pode-se afirmar, com segurança, que o resultado é pior, o que confirma a opinião dos consumidores. E, quando se afirma que a soja convencional e ecológica seria atrasada, está se pressupondo que consumidores em países até agora considerados avançados sejam atrasados.

Um outro argumento é de que, já há mais tempo, vêm sendo consumidos produtos importados geneticamente modificados sem que alguém tenha se importado com isso e que não teriam sido verificados riscos à saúde e ao meio ambiente. Mas, será que um erro poderia ser justificado através de outros erros? Parece que, apesar dos poucos estudos científicos realizados sobre riscos de plantas geneticamente modificadas, já foram constatados muitos problemas como alergias e interferências na biodiversidade ambiental. E muitos efeitos só podem ser perceptíveis a longo prazo, o que também vale para o problema dos resíduos do Glyphosate. Os efeitos de muitos agrotóxicos que há vinte anos atrás eram recomendados como seguros só agora estão sendo comprovados. E, se já sabemos, de antemão, que a soja transgênica não é melhor, por que ela deveria ser forçosamente e tão apressadamente plantada?

Por detrás dessa discussão estão os interesses das empresas fornecedoras de sementes e herbicidas que vêm influenciando políticos, os meios de comunicação e os agricultores. Os agricultores vêm sendo convencidos com os mesmos argumentos utilizados por ocasião da introdução de agrotóxicos na agricultura. O controle de inços seria mais fácil, melhor, mais barato e com menos intensidade de trabalho.  A intensidade de trabalho tem um significado importante para muitos grandes e médios proprietários rurais, pois estes afirmam que a contratação de trabalhadores rurais estaria gerando problemas com a Justiça Trabalhista, já que muitos diaristas normalmente não são regularmente registrados como trabalhadores, o que é mais um sinal da forma ilegal e injusta como estes proprietários vêm agindo. Mas, este argumento também não confere com a realidade, pois são poucos os trabalhadores rurais que reivindicam seus direitos na Justiça, já que a maioria destes é pouco informada sobre seus direitos como trabalhadores. Os poucos casos são generalizados para justificar argumentos. O problema com a intensidade de trabalho é que há cada vez menos força de trabalho disponível na agricultura, o que também, gradativamente, vem atingindo os pequenos agricultores, porque a maioria dos jovens está indo para as cidades em busca de emprego. Mas, se a soja resistente ao Glyphosate possibilita que, com isso, o controle dos assim chamados inços possa ser realizado de forma mais barata, mais simples e melhor, por que os agricultores dos Estados Unidos,  país onde o plantio de soja transgênica foi iniciado, anualmente vêm diminuindo a área de plantio desta soja?

A explicação é que os agricultores norteamericanos estão interessados nos melhores preços da soja convencional e não estão conseguindo mais controlar os inços na soja transgênica. Com o decorrer do tempo, os agricultores foram obrigados a utilizar quantidades progressivamente maiores de herbicida, pois muitos inços se tornaram resistentes ao Glyphosate e, por isso, eles tiveram de recorrer aos meios convencionais de controle. Os crescentes custos de produção com semente e herbicida também conduziram a uma situação de inviabilidade do cultivo de soja transgênica. No início os preços da semente transgênica e do herbicida são excepcionalmente menores, um vez que o objetivo é integrar os agricultores nesta nova forma de produzir.

No Brasil, o cultivo ilegal da soja transgênica também conduziu a outros problemas. Agrotóxicos proibidos e doenças até então desconhecidas foram introduzidas na agricultura em função do contrabando de sementes do exterior. O problema se torna ainda mais grave quando os agricultores são iludidos e trapaceados pelos contrabandistas e intermediários com falsos produtos e altos preços. Por outro lado, há agricultores que colaboram com esses vendedores, ao permitirem o armazenamento de sementes e agrotóxicos proibidos em suas propriedades, o que dificulta o controle da venda destes produtos. O governo tem pouco poder de ação numa situação dessas. No parlamento o Lobby dos grandes proprietários domina a discussão desse tema e a opinião pública vem sendo constantemente convencida das vantagens da soja transgênica pelos grandes meios de comunicação. Um movimento contrário vêm sendo conduzido pelo MST, pequenos agricultores, sindicatos e ONGs, mas a organização dos consumidores brasileiros ainda é muita fraca, de forma que a maioria dos atingidos têm pouca participação no debate.

A discussão certamente levará a muitos conflitos, pois a soja transgênica continuará sendo proibida e o governo brasileiro cortou os financiamentos, empréstimos e benefícios fiscais para os produtores que venham a produzir soja transgênica. Se a comercialização desta safra não pode ser proibida, a orientação dos programas agrários e agrícolas em outro rumo pode assumir uma importância decisiva na mudança da situação. E, mais importante ainda, será a posição contrária dos consumidores do exterior com relação à soja transgênica, pois se estes não a comprarem, não haverá sentido em produzi-la.

 

* Doutorando em Ciências Sociais na Universidade de Osnabrück – Alemanha

 

Revista Espaço Acadêmico – Ano III – Nº25 – Junho de 2003 – issn 1519.6186