Trabalho coletivo e educação: um estudo de práticas cooperativas em escolas na Região Fronteira Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul

A Região Fronteira Noroeste do Rio Grande do Sul possui uma história de trabalho cooperativo e comunitário. No decorrer dos anos 80, com a crise do cooperativismo empresarial e do modelo de agricultura baseado no binômio trigo-soja, vários foram os momentos de discussão sobre novas alternativas de produção e organização nesta região. Como resultado destes debates, em 1992, surgiu a idéia de inserir um trabalho de educação cooperativa nas escolas, com o objetivo de contribuir na construção da consciência associativa dos alunos e na sua participação ativa na sociedade.

O Programa de Cooperativismo nas Escolas, iniciado em 1993, como trabalho conjunto de  diversas entidades da região, envolveu alunos em 11 municípios e constitui-se como referência  ao trabalho cooperativo em escolas. O estudo das práticas cooperativas desenvolvidas por este programa, durante o ano de 1999, originou uma dissertação de mestrado em educação na UNIJUÍ, concluída em 2001. A hipótese básica apresentada é a idéia de que com as práticas cooperativas os alunos constróem uma consciência cooperativa. Ou seja, supõe-se que através do trabalho coletivo os alunos aprendem a se organizar e atuar em grupo para resolver seus problemas, o que influencia no seu processo de consciência. O referencial teórico utilizado baseou-se na teoria marxista, tendo o trabalho como categoria central e explicativa para a educação. A pesquisa de campo foi realizada com 376 alunos e 94 professores em 9 municípios e os seus resultados estaremos apresentando, de forma resumida, através do presente texto.

O processo de construção da consciência através das práticas cooperativas

O pressuposto teórico inicial desta pesquisa é o entendimento de que a consciência humana é um processo em constante movimento que deriva da prática, das relações que os seres humanos estabelecem entre si e com a natureza. Em outras palavras, a consciência resulta do trabalho, da ação concreta na realidade que vai sendo representada mentalmente. Ao abstrair diretamente o material, o ser humano corre o risco de se iludir, ao conferir como conhecimento a visão fragmentada do real. É o que ocorre  quando o sujeito concebe como natural e dado o que apenas é resultado da aparência fragmentada e condicionada do material. Ao interiorizar as relações vivenciadas, a tendência é generalizá-las como absolutas, constituindo a base para a aceitação da ideologia, das relações materiais concebidas como idéias.

Com base neste pressuposto teórico, os alunos participantes de práticas cooperativas em escolas manifestam, inicialmente, uma primeira forma de consciência que foi determinada pelas relações  sociais que vivenciaram em seu contexto histórico e cultural e que constituíram sua compreensão de mundo, ser humano e sociedade. As relações vivenciadas na comunidade tendem a ser reproduzidas na escola e a sua consciência é manifestada em suas práticas.

A introdução de um trabalho cooperativo nas escolas pode aparecer como elemento de contradição à prática cotidiana dos alunos, tendo em vista que a sua organização coletiva produz relações sociais diferenciadas e que podem se confrontar com suas idéias e práticas. Dependendo da intensidade das novas relações vivenciadas, através das práticas cooperativas, estas se articulam com as relações anteriores e, na contradição com as representações ideais existentes, geram o movimento de superação.

O referencial teórico desenvolvido aponta esse potencial de mudança nas práticas cooperativas, anunciando que o processo depende da  envergadura dos problemas que os alunos enfrentam e da intensidade do movimento de contradição que é instaurado em sua consciência. Além da condição objetiva de contradição que é provocada, é necessário, portanto, a reflexão da prática como movimento gerador da consciência crítica e de transformação.

O princípio da autogestão e a crítica ao cooperativismo tradicional

A pesquisa de campo identificou que há uma estreita relação entre a forma de organização das cooperativas de alunos e a sua capacidade de crítica ao cooperativismo em geral.  Ao serem questionados sobre as diferenças entre a cooperativa de sua escola e as demais cooperativas, a forma de organização aparece como primeira referência. No entanto, o maior problema identificado  no cooperativismo é a falta de participação dos associados, o que coincide com as experiências práticas dos alunos e as demais cooperativas que conhecem. A novidade é que nas cooperativas escolares os alunos afirmam ter superado, em boa parte, este problema, o que está vinculado à estrutura de organização e ao diálogo. As duas características estão mutuamente implicadas, pois para haver organização é necessário o diálogo e o diálogo também depende da forma como está organizada a cooperativa.

A prática cooperativa dos alunos e o processo de reflexão sobre sua atividade conduz à crítica da sua organização e à superação de problemas. Ao superar problemas e comparar sua maneira de se organizar com a estrutura de funcionamento das demais cooperativas, os alunos se tornam críticos do cooperativismo tradicional e defensores de um “outro cooperativismo”. Além disso, ao participar de decisões e da organização de seu próprio trabalho, o grupo de alunos potencializa a democracia.

Os problemas na convivência, que passam a ser colocados em evidência através da prática cooperativa, constituem a base da socialização do grupo e a construção de soluções coletivas para avançar na organização é um exercício permanente de democracia. No cooperativismo chamamos isso de autogestão: um processo de organização em que o próprio grupo associado decide sobre as suas ações. Portanto, a autogestão é o princípio de organização dos alunos e a autonomia gerada no processo desperta para a crítica do cooperativismo tradicional. A organização e o diálogo são condições para a autogestão e, como esses dois aspectos não são valorizados nas cooperativas tradicionais, constituem-se em alvo da crítica dos alunos.

A importância da prática da convivência

Com base nas informações da pesquisa de campo, são apontados três fatores que motivam a participação de alunos em práticas cooperativas: a) afetividade; b) aprendizagem; c) resultados econômicos.

No que se refere à afetividade, os alunos têm atribuído um valor importante à amizade e à oportunidade de se encontrar em grupo. Isso pode ser interpretado como uma necessidade dos alunos que encontram poucos momentos na escola para conversar sobre problemas, expectativas e sentimentos. As práticas cooperativas são destacadas como espaço de diálogo, convivência e partilha de sentimentos. 

A aprendizagem de habilidades no trabalho e a utilização de tecnologias são apresentadas como resultados positivos da prática cooperativa. Além disso, o trabalho coletivo desenvolve o exercício da autogestão, vivência da democracia, convivência com as diferenças, superação de preconceitos, consciência do coletivo e capacidade de liderança. Essas características resultantes da convivência em grupo são consideradas como importantes para a vida dos alunos e justificam sua motivação para a participação em outros grupos na sociedade. Além disso, as práticas cooperativas desenvolvidas servem de referência para integrar conteúdos das diversas disciplinas trabalhadas na escola.

Os resultados econômicos das cooperativas de alunos são geralmente investidos em atividades de formação, viagens e festas. A sua expectativa é constante no decorrer da atividade, o que pressupõe uma preocupação do grupo com os custos, o investimento, a comercialização, a remuneração do trabalho e a viabilidade econômica do empreendimento. A demonstração de sucesso em sua iniciativa também constitui um elemento de motivação diante da comunidade em que os alunos estão inseridos, valorizando seu trabalho em grupo.

O trabalho cooperativo, como prática de convivência dos alunos, além de permitir a satisfação de necessidades, construção de conhecimento e resultados econômicos, motiva para a necessidade de organização social e política dos alunos. Ao trabalhar coletivamente, os alunos relacionam-se entre si e com a natureza, gerando novas formas de convivência, o que influencia na construção da personalidade humana. A consciência de si mesmo depende da consciência do outro e, através da relação cooperativa, ambos se encontram e aprendem mutuamente.

O momento teórico de reflexão da prática

A educação e o cooperativismo são práticas sociais. Ambas são frutos da cultura, da sociabilidade e do relacionamento humano. Seu surgimento é decorrente de necessidades que os seres humanos desenvolveram ao longo da história, dos desafios que mulheres e homens encontraram para  resolver problemas da sua vida. O início da aprendizagem decorre do ato cooperativo inicial em que, diante de problemas concretos, os seres humanos construíram coletivamente suas soluções. Nesta perspectiva, a aprendizagem é um processo cooperativo e a cooperação se torna um permanente processo de aprendizagem:  a práxis da convivência humana

A práxis é o processo em que, a partir da materialidade, a consciência humana reflete a prática e produz uma nova forma de intervenção na realidade, continuando o movimento numa nova abstração da realidade e assim sucessivamente. É isso que conceitualmente foi denominado como Teoria Dialética do Conhecimento. A educação é precisamente o momento teórico de reflexão da prática, embora se converta em prática ao ser desenvolvida. Podemos compreender assim a importância do uso das categorias teóricas para entender uma prática e, conscientemente, transformá-la.

No caso das cooperativas de alunos, o momento teórico de reflexão da prática do cooperativismo é a sua atividade educativa. A forma como acontece a prática, sua organização em forma de autogestão, é o que permite a formação da consciência, como base real sobre a qual opera o movimento de reflexão e surgimento da contradição. As práticas cooperativas construíram conhecimento nos momentos em que os alunos teorizaram sobre suas ações e a nova prática desencadeada gerou o processo de aprendizagem que continua em movimento.

Num primeiro momento, as experiências cooperativas ocorrem num contexto em que a forma como estas são desenvolvidas se cruza com a compreensão de cooperativa que os alunos já possuem anteriormente. Em seguida, a intervenção teórica produzida sobre a prática se constitui no principal momento educativo, de explicitação dos conflitos e provocação de rupturas. E, por último, as mudanças operadas nas práticas, em decorrência da reflexão teórica, são o produto histórico que serve de base para o desenvolvimento de novas práticas futuras.

A vivência do conceito cooperação e as mudanças nos alunos.

A teoria desenvolvida até aqui parte da idéia de que a prática cooperativa gera rupturas nas relações que impedem a convivência e, com a tomada de consciência da contradição, vão sendo construídas novas práticas de cooperação. É nisso que consiste o processo de vivência do conceito cooperação, em que é necessário tornar consciente o real para construir o novo. Por isso, as novas práticas cooperativas  resultam da vivência da cooperação e não decorrem de um mero dever-ser, desvinculado das relações conflituosas da prática.

Os resultados das práticas cooperativas em escolas apresentadas neste estudo são decorrentes da pesquisa realizada com professores e alunos no ano de 1999 e sua posterior interpretação baseada no referencial teórico. Neste sentido, a maioria dos professores (87,9%) afirma que constatou significativas mudanças nos alunos após a realização das práticas cooperativas. As principais mudanças apontadas (84,8%) referem-se a uma maior participação e responsabilidade dos alunos em grupo, o que se expressa nos seguintes indicativos: a) melhor convívio entre alunos e professores; b) responsabilidade ao assumir tarefas de grupo; c) maior participação em atividades na escola e na comunidade; d) trabalho crítico em sala de aula; e) mais liderança, interesse, união, motivação e espírito de luta para concretizar objetivos. Os alunos, quando questionados sobre a importância das práticas cooperativas para sua vida, destacam, principalmente, a convivência (30,7%), a participação (23,5%) e a organização (17,8%).

Os resultados apresentados são decorrência da forma como as práticas cooperativas são estruturadas nas escolas, destacando os seguintes aspectos: a) organização interna; b) planejamento; c) conhecimento da realidade; d) democracia; e) diálogo; f) amizade; g) responsabilidade em relação ao grupo. A autogestão, reflexão crítica da realidade  e a convivência são pressupostos para a realização de práticas cooperativas em escolas e decorrência da vivência da cooperação. A maior participação dos alunos é um resultado e, ao mesmo tempo, uma exigência para o funcionamento das cooperativas.

Através do trabalho coletivo, organizado em forma de cooperativas autogestionárias, pode-se concluir que o cooperativismo, além de ser uma atividade econômica, também é uma experiência educativa. O processo de consciência desenvolvido pode ser apresentado nas seguintes etapas: a) inicialmente, as mesmas necessidades ou problemas motivam a organização coletiva; b) a forma como as pessoas se organizam em grupo e as relações sociais que estabelecem podem desenvolver novos valores e práticas; c) As novas formas de agir e se relacionar confrontam-se com os valores anteriores e potencializam a identidade grupal, desenvolvendo a ação coletiva que determina a consciência coletiva.

É esse o processo de consciência constatado como possível através de práticas cooperativas em escolas. A intensidade do processo educativo depende das relações sociais construídas pelos alunos, do movimento de reflexão para tornar consciente a contradição entre o que é construído e as idéias e práticas cotidianas, e das rupturas que o coletivo for produzindo na sua organização, num movimento de contínua e ininterrupta superação.

Ao final do trabalho, os resultados da pesquisa, levando em consideração o período e o contexto em que foi realizada, levaram à enunciação de três aspectos que sintetizam as conclusões: a) a organização dos alunos em práticas cooperativas revela um potencial de crítica a estruturas de organização social atualmente existentes; b) o exercício da convivência é, ao mesmo tempo,  uma condição e um resultado da atividade cooperativa e constitui um elemento central na organização dos alunos, permitindo o desenvolvimento de relações sociais geradoras da consciência de grupo; c) a vivência da cooperação e a constante reflexão desta prática podem influenciar na mudança de comportamento dos alunos, destacando uma maior participação, organização e responsabilidade em grupo.

 

Revista Espaço Acadêmico – Ano 2004 – issn 1519.6186