60 anos após a 2ª. Guerra Mundial: quem libertou quem do quê?

O dia 8 de maio é lembrado na Alemanha como o “dia da libertação”, pois marca, oficialmente, o fim da 2ª. Guerra Mundial e do império nazista. Em função da comemoração dos 60 anos deste momento histórico, foram muitos os momentos em que se debateu sobre esta guerra, o nazismo, as barbáries de Auschwitz e, enfim, o que isso tudo representa para o povo alemão. A mídia não se cansou de apresentar documentários e debates sobre o tema, várias manifestações ocorreram tanto por parte de organizações antifascistas como neonazistas e, é difícil encontrar um cidadão alemão que não tenha parado um momento para refletir sobre parte dessa história do seu país, que continua marcando profundamente o cotidiano da maioria das pessoas. Afinal de contas, foram em torno de 60 milhões de pessoas que morreram em função desta guerra, uma das maiores tragédias da história humana. Em tudo isso, chama a atenção a forma como o assunto é massivamente abordado, utilizando a técnica do recorte histórico para isolar acontecimentos do contexto maior que permitiria melhor compreendê-los. Nesse sentido, o conceito de libertação do nazismo é inadequado para a situação alemã. Ele é utilizado para legitimar a ocupação do país por parte das tropas aliadas e soviéticas e reforça ideologicamente uma pretensa vitória dos valores capitalistas ocidentais e a dominação sobre o leste europeu. Se o fim da 2ª. Guerra Mundial representaria uma libertação, é necessário perguntar quem são os libertadores, quem são os libertados e do que ele teria libertado a Alemanha?

Iniciemos pelos milhões de vítimas pois, afinal, em nosso entendimento, são elas que merecem todo o respeito e devem ocupar a centralidade em nossa memória. São os judeus, ciganos, homossexuais, presos políticos e todos os que, de uma forma ou outra, resistiram ao totalitarismo e pagaram com suas vidas e seu sofrimento. Esses grupos podemos caracterizar de vítimas e, quando as tropas soviéticas invadiram Auschwitz, podemos, realmente, identificar o fato como um ato de libertação de pessoas sobreviventes do nazismo, mesmo que, como sabemos, soldados soviéticos as tenham torturado posteriormente. Entre essas vítimas estão alemães mas, a maioria do povo alemão não foi vítima do nazismo; pelo contrário, não desejava a derrota de Hitler e uma possível “libertação” do totalitarismo que elegeu. A idéia de libertação, neste contexto, legitima a suposição de que o povo alemão tenha sido oprimido por uma minoria nazista desde 1933, o que não confere com a realidade: o nazismo teve uma base social e um contexto histórico que permitiu sua emergência e ascensão, e parte de seus valores ainda continuam presentes, inclusive nos atuais partidos políticos.

Entre os alemães havia, inclusive, aqueles que, mesmo diante da provável derrota, ainda acreditavam em “armas milagrosas” que pudessem conduzir a uma vitória alemã e uma maioria que, mesmo aliviada com a possibilidade do fim da guerra, não via nas tropas aliadas os libertadores e sim o exército mais forte e vencedor, ao qual já procuravam reconhecer como futuro dominador. Por outro lado, não se deve esquecer, neste contexto, a iniciativa de grupos antifascistas alemães que, em 1945, lutavam pela afirmação de uma nação alemã unificada, democrática e independente tanto das imposições dos países aliados como das soviéticas, mas que foi liquidada pelos vencedores da guerra. A maior resistência a Hitler foi de grupos de esquerda e de organizações de trabalhadores mas, diferente do que ocorreu por ocasião da 1ª. Guerra Mundial, ela não chegou a constituir um movimento contra a guerra e o Estado em condições de derrotar o totalitarismo em curso. O fim do nazismo resulta, portanto, de uma derrota militar, ao que se sucedeu uma ocupação do território por parte dos vencedores. 

Assim, chegamos aos atores: os dois blocos que derrotaram o nazismo e, posteriormente, dividiram o território entre si como área de influência. Uma assim chamada libertação do povo alemão do nazismo sequer fazia parte dos objetivos bélicos dos países envolvidos. Eles estavam muito mais centrados na disputa de territórios estratégicos, riquezas e, principalmente, na reação às invasões provocadas pelos nazistas e na possibilidade de impedir futuras agressões por parte destes em áreas de interesse daqueles. A dominação do leste europeu é um antigo objetivo dos países ocidentais presente também, por exemplo, nos interesses que geraram a 1ª. Guerra Mundial, e que, na atualidade, se afirma através da supremacia econômica do capital ocidental nestes países, onde as empresas locais estão em enorme desvantagem para concorrer com aquelas que, vindas do oeste, sequer podem ser identificadas com nações.

A Alemanha está situada geograficamente no espaço estratégico que dividia os interesses presentes durante a Guerra Fria, o que justifica sua divisão em duas áreas distintas no período pós-guerra. Curiosamente, o país derrotado em 1945 aparece como vencedor com a “unificação” em 1989, o ano que para alguns historiadores chega a ser identificado como o verdadeiro marco do final da 2ª. Guerra Mundial. Neste aspecto, em particular, não ocorreu uma unificação e sim uma anexação da Alemanha Oriental à Alemanha Ocidental.

Para entender a derrota de Hitler e evitar a simples comparação deste com Stálin, outro erro de interpretação mundialmente propagado, é importante não esquecer seu inimigo principal: o bolchevismo judeu. A identificação do judaísmo com o comunismo, uma originalidade dos nazistas que, posteriormente, é invertida com relação ao capitalismo financeiro e difundida mundialmente como preconceito, é a motivação declarada para a invasão dos países soviéticos e o combate à esquerda na Alemanha. É o final da guerra, com a vitória soviética, que propicia a ocupação da Alemanha Ocidental por parte das tropas aliadas, conduzindo aos acordos que dividiram tanto o país como a sua capital, Berlim, em dois territórios. As áreas ocupadas serviam aos interesses estratégicos dos dois blocos, em especial aos países aliados, que, com a reconstrução da Alemanha, transformaram o país numa potência econômica e militar fundamental no contexto da Guerra Fria e possível aliada para possíveis guerras seguintes.

Um personagem central, nesse aspecto, são os Estados Unidos, que tiveram um interesse decisivo nessa reconstrução e são, em decorrência, vistos até hoje como libertadores por boa parte da população alemã. Isso não foi difícil porque, em termos econômicos, é possível identificar uma linha de continuidade entre o capitalismo alemão nazista e a posterior presença dos EUA. Politicamente, a população se adaptou rapidamente às novas exigências e a “americanização” do país foi acontecendo gradativamente. Em importantes setores da burocracia estatal, no Poder Judiciário, na mídia, nas empresas e, inclusive no exército, os nazistas, ao contrário do que se poderia supor anteriormente, continuaram exercendo importantes posições após a queda do nazismo. Muitos dos líderes mais conhecidos puderam emigrar para os Estados Unidos onde foram muito bem acolhidos no novo país, um sonho fortemente presente na elite alemã até hoje, constituindo um símbolo de sucesso na vida.

Hitler e vários de seus comandantes mais importantes se suicidaram e outros foram executados, mas muitos soldados nazistas foram bem tratados pelos países aliados e vários continuam vivos, afirmando que somente cumpriram ordens. Diferente foi o tratamento com os soldados soviéticos, os inimigos e maiores responsáveis pela derrota de Hitler. O “exército vermelho” teve uma enorme perda de soldados e muitos veteranos da guerra vivem em situação de pobreza até hoje e são completamente desprezados pela sociedade em seus países, especialmente após o desmoronamento da União Soviética. Não somente os maiores extermínios do nazismo ocorreram no leste europeu; também as maiores batalhas da guerra ocorreram nesses países, cujo povo é que, na realidade, teve o maior número de vítimas do fascismo alemão.

O objetivo da Alemanha nazista, com a invasão do leste europeu, era o de dominar imensos territórios para se apropriar de suas riquezas. O extermínio das pessoas que se colocassem como empecilho a esse objetivo foi, desde o início, planejado e executado. A ideologia nazista, alicerçada no racismo e no nacionalismo, serviu a esses interesses e foi politicamente derrotada nestes 60 anos. Com a derrota na guerra, a ocupação do território alemão foi importante para a reconstrução da hegemonia militar do capitalismo ocidental, alicerçada, entretanto, no referencial anticomunista já presente anteriormente. A burguesia alemã, que fôra majoritariamente aliada a Hitler e faturara com o regime nazista, rapidamente se dispôs a cooperar com os países aliados, que ocuparam o território ocidental no período pós-guerra. No leste, a ditadura política continuou com a ocupação soviética; no oeste, a ditadura econômica do capital foi revigorada com a imensa injeção de investimentos por parte dos países aliados e o anticomunismo, reforçado como ideologia, atraiu recursos financeiros num período em que a necessidade de ostentação de supremacia do capitalismo sustentava a existência do Estado de bem-estar social e a chamada economia social de mercado.

Os interesses econômicos que estão na base do nazismo e que provocaram a invasão alemã aos territórios vizinhos continuam presentes até hoje no capitalismo, que se apresenta pretensamente como modelo e guardião dos ideais de liberdade e democracia para o mundo. Também o racismo, o nacionalismo, a intolerância e a discriminação de povos e grupos sociais não foi superada com a supremacia do capital em nível internacional. Com o fim da União Soviética, o potencial bélico do capitalismo ocidental se deslocou para outros territórios utilizando, entretanto, novamente, a idéia de “libertação” desses povos para legitimar seus interesses de poder. Dessas pretensões, a Alemanha não foi nem está liberta, mesmo ocupando uma posição coadjuvante na estruturação do atual imperialismo capitalista mundial, o que minimiza as recentes declarações otimistas de que a participação numa guerra estaria completamente descartada para o futuro do país. Se assim o fosse, não haveria motivos para os intensos investimentos que ocorrem no setor militar, tanto na Alemanha como em toda a Europa. Para impedir que Auschwitz e as guerras se repitam é preciso lutar sem cessar. Se dar por satisfeito com conquistas políticas formais no interior do capitalismo, entretanto, é subestimar os interesses e a lógica que o fundam, negando a aprendizagem histórica de que terrorismo e imperialismo estão intimamente imbricados, mesmo quando aparecem disfarçados com o discurso da liberdade e da democracia.

 

* Artigo publicado na Revista Espaço Acadêmico Nº 49 – Junho/2005