Centro-direita governa e esquerda cresce na Alemanha

Antônio Inácio Andrioli* & Hermann Dierkes**

 

Os resultados das recentes eleições alemãs confirmam uma tendência crescente também em outras partes do mundo: o neoliberalismo continua perdendo credibilidade. Os sociais-democratas e os democratas-cristãos foram derrotados ao mesmo tempo, de forma que nenhum dos dois blocos aliados previstos na campanha eleitoral (sociais-democratas e verdes; democratas-cristãos e liberais) conseguiu uma maioria de deputados para compor um novo governo, e o Partido de Esquerda (Linkspartei) passou de 2 para 54 deputados. Assim, os grandes adversários nas eleições foram obrigados a se unir entre si para formar uma assim chamada grande coalizão de centro-direita no governo. Curiosamente, entretanto, na noite das eleições, todos os partidos se apresentavam como vitoriosos diante dos resultados eleitorais. Quem realmente venceu as eleições na Alemanha e como podemos interpretar esse resultado eleitoral?

Os eleitores alemães foram às urnas em 2005 porque o chanceler Gerhard Schröder do SPD (Partido Social-Democrata da Alemanha) tomou a decisão de antecipar as eleições federais, anteriormente previstas para 2006. Considerando as seguidas derrotas do partido social-democrata em todos os estados da federação, Schröder procurou se antecipar a uma série de derrotas políticas que estavam por vir: a) o conseqüente bloqueio das ações do seu governo na Segunda Câmara Legislativa (Bundesrat), formada por representantes dos 16 estados federados, em sua ampla maioria, opositores; b) o aumento das mobilizações populares contra sua política de desmonte social; c) a crescente crítica interna no seu partido, diante das duras derrotas em eleições estaduais, inclusive em seus redutos históricos; d) a possibilidade de fortalecimento da esquerda, após as massivas desfiliações do SPD, a criação da WASG (Alternativa Eleitoral – Trabalho e Justiça Social) na parte ocidental do país e a predisposição do PDS (Partido do Socialismo Democrático) de construir um partido de esquerda unificado. Portanto, para tentar sair da enorme crise eleitoral do seu partido, Schröder jogou todas as suas fichas numa disputa eleitoral com vistas à ampliação de sua base de apoio no parlamento, interpretada por muitos analistas políticos como “a opção pelo suicídio antes da chegada da morte”. A tática de Schröder em busca da segunda reeleição não foi exitosa, mas, ao contrário do que a maioria das projeções e pesquisas eleitorais apontavam, ela impediu a vitória do bloco opositor formado pela CDU/CSU (União Democrática Cristã/União Social Cristã) e o FDP (Partido Liberal). O curto prazo para as eleições contribuiu para a unificação do recém-criado partido de esquerda WASG, eleitoralmente mais forte no oeste, com o já existente PDS, de maior expressão eleitoral no leste do país, dando origem a uma frente eleitoral, o Linkspartei.PDS (Partido de Esquerda). O WASG e o PDS continuam engajados num processo de fusão, com forte potencial de crescimento no “vácuo político” deixado pela social democracia à sua esquerda.

Se Schröder não obteve uma maioria para governar com sua coalizão de sociais-democratas e verdes, também o bloco oposicionista de direita não alcançou a maioria prevista para governar, tendo à sua frente a candidata Angela Merkel. Os resultados foram os seguintes: a) União Democrática Cristã/União Social Cristã: 226 deputados (35,2%); b) Partido Social-Democrata: 222 deputados (34,2%); c) Partido Liberal: 61 deputados (9,8%); d) Partido de Esquerda: 54 deputados (8,7%); e) Partido Verde: 51 deputados (8,1%); f) Outros partidos: nenhum deputado (4%). Diante destes resultados, os grandes derrotados nessa eleição foram, de fato, os sociais-democratas, que diminuíram em 4,3%, e os democratas-cristãos, que alcançaram 3,3% menos votos em comparação à eleição de 2002. O Partido Verde também diminuiu sua votação em 0,5% e forma a menor bancada no parlamento, enquanto o Partido Liberal cresceu 2,4% e o Partido de Esquerda, o grande vitorioso nesta eleição, dobrou sua votação, crescendo 4,7% em relação à eleição anterior.

Nenhum dos dois grandes blocos de partidos, portanto, atingiu a maioria necessária de 308 deputados para compor um novo governo: os opositores CDU/CSU e FDP somaram 287 deputados eleitos, enquanto a coligação do chanceler Schröder (SPD e Bündnis 90/Die Grüne) somou  273 deputados. O Partido de Esquerda declarou, desde a campanha eleitoral, que continuará na oposição e o Partido Liberal se recusou prontamente a participar de um governo com os sociais-democratas e os verdes. Os verdes, por sua vez, após tratativas com os democratas-cristãos, também recusaram uma aliança e a única alternativa restante aos dois grandes partidos, foi a construção de uma  coalizão entre si.

O objetivo do SPD, nas negociações políticas com a CDU/CSU, foi alcançar o máximo de cargos possíveis no novo governo, em troca da cedência da vaga de chanceler. Schröder, que nas pesquisas de opinião para chanceler sempre esteve à frente de Merkel, inicialmente sequer se dispôs a aceitar sua derrota eleitoral, mas foi politicamente “sacrificado” em nome da grande coalizão, terminando por não aceitar nenhum cargo no novo governo. Com essa estratégia, o SPD conseguiu oito ministérios, assim como a CDU/CSU, que, para isso acontecer, chegou a elevar o cargo de secretário da nova chanceler a ministro. Por isso, devido à forte representação do SPD nos ministérios, já se fala de uma “socialdemocratização” do novo governo. A assim chamada grande coalizão, entretanto, tendo Angela Merkel como chanceler, revela o que, de fato, já vinha ocorrendo há muito tempo no governo Schröder: uma grande unidade em prol das “reformas necessárias”, de caráter neoliberal. Ou seja, a unidade do SPD com a CDU/CSU já existente de maneira informal na Segunda Câmara Legislativa, agora passa a ser oficial também no parlamento e no governo. A maioria das contrareformas neoliberais do governo Schröder (as principais delas conhecidas como Agenda 2010 e Leis Hartz), a escandalosa isenção de impostos a grandes empresas, o desmonte social e a redução de conquistas históricas dos trabalhadores, foram construídas e aprovadas conjuntamente pela social democracia e pela democracia cristã. A diferença, proposta pelos democratas-cristãos, em aliança com os liberais, era uma maior radicalidade na implementação do neoliberalismo, o que, entretanto, encontrou resistência na população.

Se a proximidade programática dos dois grandes partidos permite a formação de um governo de direita com ampla maioria parlamentar, sua base de apoio social para implementar as “reformas” neoliberais é restrita, de acordo com o resultado eleitoral. A social democracia só evitou uma catástrofe eleitoral maior porque, vendo o crescimento da esquerda, repentinamente ficou sensível, eleitoralmente, para propostas até então abandonadas e retirou do “baú social-democrata” seus jargões de “justiça social”, de crítica ao “capitalismo selvagem” e chegou a anunciar, inclusive, na contramão de seu governo, a promessa de criar um “imposto sobre os ricos” no país. Essas modificações cosméticas em seu programa e o apelo ao voto útil, entretanto, não foram suficientes para impedir a derrota do SPD, mesmo que tenham retirado o partido da posição extremamente desfavorável em que se encontrava até duas semanas antes da eleição.

A falta de credibilidade da social democracia com sua polarização artificial em época eleitoral e a ausência de diferenças significativas entre os dois maiores partidos alemães têm contribuído para o aumento da indiferença dos eleitores com relação a eleições. Como o exercício do voto na Alemanha é facultativo, o total de votantes diminuiu de 79,1% em 2002 para 77,7% em 2005, demonstrando que a desilusão e o descrédito dos eleitores continuam crescendo. O número de votos válidos, portanto, diminuiu em 800 mil e, do total de eleitores potenciais, a CDU/CSU perdeu aproximadamente 740 mil votos e o SPD em torno de 510 mil votos para a categoria dos não- votantes. Nesse contexto, somente a esquerda ganhou votos dos tradicionalmente não-votantes: cerca de 390 mil votos. Um aspecto importante dessa votação junto aos tradicionalmente frustrados e não-votantes é que a alternativa da esquerda abriu novas perspectivas para um público suscetível à extrema direita. Os partidos neonazistas, somados, mesmo dobrando sua votação em relação à eleição 2002, alcançaram somente 2,2 % dos votos, o que aumenta ainda mais a responsabilidade política da esquerda.

O extraordinário sucesso eleitoral da esquerda, passando de 1,9 milhão de votos em 2002 para 4 milhões em 2005, pode ser melhor visualizado na sua captação de votos de outros partidos: 1 milhão do SPD, 250 mil da CDU/CSU e 220 mil dos verdes. Em 2002, em função das suas alianças com o SPD em dois estados, a esquerda havia perdido 600 mil votos; agora, a clara diferenciação com relação aos sociais-democratas lhe rendeu não somente a extraordinária votação de 25,3% no leste (onde a esquerda já estava assentada como alternativa eleitoral), mas também a conquista de 4,9% dos votos no oeste, um claro sinal da crescente impopularidade do SPD. Também contribui para a esquerda o fato do ex-presidente do SPD e histórico representante da esquerda social-democrata, Oskar Lafontaine, ter aproveitado o momento para abandonar a social democracia, levando consigo um número significativo de militantes e eleitores, e ingressar na WASG, posicionando-se favoravelmente à unificação com o PDS. Essa unidade em torno do novo partido Linkspartei.PDS possibilitou o maior êxito eleitoral registrado pela esquerda da Alemanha nas últimas décadas.

O potencial de crescimento da esquerda diante da grande coalizão da direita é grande, especialmente porque assim uma polarização entre direita e esquerda voltou a ser possível, o que, certamente, também influenciará as ações e os programas dos demais partidos, principalmente do SPD e dos verdes. Inicialmente, porém, as dificuldades serão grandes, pois não se trata apenas de unificar efetivamente dois partidos, anteriormente isolados e internamente muito diferenciados. O programa eleitoral anunciado pelo Partido de Esquerda se baseia, em sua maior parte, no resgate de propostas historicamente abandonadas pela social democracia. Sua pretensão de meramente ocupar um espaço deixado pelo SPD e a expectativa de aguardar por um suposto retorno dos sociais-democratas e verdes à esquerda, para a formação de um governo futuro em comum, despreza o aprendizado que o partido já acumulou com as experiências negativas das alianças com o SPD ainda existentes em dois estados. O elemento central para o fortalecimento da esquerda na Alemanha é a sua sintonia com os movimentos sociais e populares, que permitiram seu sucesso eleitoral recente. Não basta, portanto, a oposição parlamentar para impedir a continuidade do desmonte social e das políticas neoliberais vigentes no país. O fundamental para a esquerda é a mobilização social que permita uma unidade anticapitalista com a classe trabalhadora e os desempregados. Outro aspecto decisivo é a ampliação do caráter internacionalista da esquerda, tendo em vista que diante da mundialização do capital uma efetiva resistência dos trabalhadores requer uma maior organização em nível global.

Assim como a idéia de que a Alemanha seria uma “ilha social-democrata” isolada da onda de conservadorismo na Europa, que agora mais uma vez ficou comprovada como ilusória, também o êxito da esquerda no país não é um fato isolado. Em muitos países europeus a esquerda passa a se reconstituir após um período de intensa ofensiva do capital e de seus representantes na esfera política. Diante da unificação programática da direita no governo alemão e do risco de se repetir com Angela Merkel o que Margareth Thatcher significou em termos de política neoliberal para a Inglaterra, o crescimento eleitoral da esquerda é, inicialmente, um sinal de esperança que chegou em boa hora. Os demais partidos e a mídia conservadora procuram desmoralizar a esquerda, desde o período eleitoral, seja em forma de ataques pessoais a seus parlamentares, seja através de uma intensa campanha difamatória de caráter ideológico, absolutizando a “necessidade e irreversibilidade” das “reformas” neoliberais.

O sinal de alerta foi dado nestas eleições, os neoliberais o compreenderam imediatamente e a intensificação do debate político voltou a integrar a rotina da sociedade alemã. Com o êxito eleitoral da esquerda unificada, a margem de manobra do governo Merkel diminuiu bastante e, certamente,  ele terá que recuar em muitas das suas aspirações iniciais. É muito provável que, inicialmente, não haverá nenhuma intervenção direta do governo na autonomia sindical; a prevista continuidade nas isenções de impostos a grandes empresas e a proposta de acabar com o princípio de solidariedade na área da saúde, ao menos por ora, ficarão suspensas. Por isso, as grandes associações empresariais no país manifestaram publicamente sua “frustração” com o resultado eleitoral. Também o SPD terá suas dificuldades se vier a apoiar todas as ações do novo governo de forma aberta e incondicional e terá que rever suas posições se não quiser continuar perdendo votos e filiados para a esquerda. Os sociais-democratas estão cientes de que sua presença neste governo tende a distanciá-los da base sindical que ainda possuem, correndo o risco de perder sua histórica relação com os trabalhadores e fortalecer a esquerda. Para os que não se deixaram iludir com o “canto da sereia neoliberal” e os prognósticos de que a história e as ideologias teriam acabado diante de um suposto triunfo final do capitalismo, o fortalecimento da esquerda é uma motivação a mais para continuar na luta, resistindo no espaço parlamentar, mas, fundamentalmente, na organização social e popular, a partir de onde a mudança na correlação de forças e a construção de uma nova hegemonia é possível.

 

* Artigo publicado na Revista Espaço Acadêmico – nº 54 Novembro/2005