Utopia e realidade

“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar” 

(Eduardo Galeano).

Diante do sentimento de impotência e desesperança expresso por significativas parcelas da população mundial com relação à possibilidade de transformação social em nosso tempo, o próprio conceito de utopia passa a ser interpretado na contramão de seu significado original. A caracterização de utopia como mera ilusão e de utópicos como sujeitos distantes da realidade, sonhadores e alucinados, reforça uma tendência explícita da ideologia dominante na sociedade de naturalizar a realidade existente como a única possível e deslegitimar processos sociais com potencial de transformação. Neste sentido, urge uma reflexão sobre o que se entende por utopia e realidade, o que separa e o que une esses dois conceitos, centrais para a construção do conhecimento e da existência humana.

Iniciemos pela compreensão do que é realidade. É comum o entendimento de que a realidade corresponde àquilo que “realmente existe”. É precisamente neste aspecto que a problemática toda inicia: se houvesse uma “real” correspondência entre aquilo que compreendemos com o que “realmente existe”, certamente estaríamos em posse da “verdade”. Como, entretanto, existem diferentes interpretações acerca do que “realmente existe”, poderíamos concluir que bastaria somar todas elas para atingir a “verdade absoluta”. O problema é que entre as diferentes interpretações da realidade há contradições que não permitem uma mera “junção eclética”. Uma outra alternativa possível é encarar todas as diferentes interpretações da realidade como “verdades relativas”, de forma que a “verdade absoluta” não exista. Uma terceira opção seria a aposta no confronto entre as “verdades relativas” para atingir a “verdade absoluta”, partindo daquilo que sobra após o confronto entre “verdades”. Essa versão mais elaborada do debate atual, entretanto, se choca com a dura realidade de que numa sociedade de classes as idéias dominantes tendem a ter mais “voz e vez”. Além disso, “verdades relativas” de outros tempos, seguidamente são minimizadas sob a taxação de que não são “atuais” para o debate contemporâneo. Por outro lado, o reconhecimento de que o conhecimento atualmente disponível é um processo histórico (portanto sua existência temporal não é determinante para sua validade) pressupõe uma publicidade crítica universal que possibilite a apropriação de saber por parte de todos, de forma que o conhecimento não seja meramente transmitido e se converta em instrumento de dominação de uns sobre outros, legitimado pela própria compreensão de realidade criada pelos dominadores. Nesse aspecto, já estamos nos referindo a uma utopia, a utopia de uma sociedade sem dominação, sem exploração e sem preconceito, que permita o diálogo entre sujeitos humanos livres e autônomos acerca do que é real.

Como a correspondência entre o que pensamos e a realidade objetiva continua como critério válido para a atribuição de verdade, a forma como concebemos o próprio conceito de realidade, certamente, influencia a nossa condição subjetiva de interpretação dos fatos “reais”. Assim, a pressuposição de que a realidade seja algo estático, “realmente existente”, pode conduzir a uma interpretação positivista dos fatos, absolutizando a aparência do real como o “real em si” e atribuindo à essa interpretação o caráter de dogma na forma de “verdade”, o que, em última instância, interessa à classe dominante na sociedade. É evidente que o caminho em direção à verdade não é tão simples como alguns parecem estar convencidos, e a ciência, como ensina Karl Popper, é sempre uma busca da verdade, jamais uma chegada. A própria ciência, seu objeto e seu sujeito estão em permanente mudança, de forma que aquilo que uma vez foi majoritariamente aceito como “realidade” pode deixar de “ser”. E esse é, certamente, o ponto de partida para compreender a realidade: real é o que “está aí” mais o que “não está aí”. Em outras palavras, o “que é” somente é em função do que já foi e, ao ser, “está sendo”: o “ser” se dissolve no movimento do “vir-a-ser”. A realidade, portanto, é dinâmica e, para apreender seu movimento, precisamos compreendê-la historicamente.

O conceito de utopia, por sua vez, também passou a ser compreendido de diferentes maneiras no decorrer da história. Originalmente, a palavra provém do conceito grego ou-topos, que designa um “não-lugar” ou “lugar nenhum”. O escritor inglês Thomas Morus é quem, certamente, mais contribuiu  para a difusão do termo, ao usá-lo para intitular sua obra mais famosa, indicando um território imaginário onde a sociedade por ele idealizada aboliu a propriedade privada e a intolerância religiosa, estando centrada nos valores da justiça e felicidade humana. Assim, o termo utopia passou a ser utilizado por muitos outros pensadores tanto para descrever “mundos ideais”, como A cidade do sol (Tommaso Campanella) e Nova Atlantis (Francis Bacon), como para designar o que já existia anteriormente com este significado no pensamento humano, como, por exemplo, A República de Platão. Confrontados com uma sociedade injusta e desigual “realmente existente”, muitos pensadores foram fundamentando sua crítica à “realidade” com base em uma projeção idealizada positivamente, uma idéia regulativa de mundo desejado.

A possibilidade de pensar para além da “ordem das coisas” é um dos elementos centrais da emancipação humana, pois, apesar dos condicionamentos sociais e culturais das sociedades divididas em classes, há um espaço de reflexão e ação autônoma que permite a construção de uma consciência acerca da dominação vigente com potencial de superá-la. A capacidade de pensar transcendentalmente possibitou a existência de idéias progressistas ao longo da história e que passaram a ser incorporadas a movimentos concretos de transformação social. O dilema dos utópicos clássicos é que a idealização de projetos sociais desconectados da realidade objetiva da sociedade tem reduzido sua possibilidade de concretização ao moralismo e ao voluntarismo, transformando seu potencial transformador em ideologia – no sentido de falsificação social e política da realidade. Mas, em tese, a utopia permite uma ligação entre o presente e o futuro, no momento em que ela se enraíza no presente em mudança, influenciando-o e sendo influenciada por ele. Como esse é um processo dialético, o risco é que os desejos e idéias projetadas se mantenham numa dimensão estática, isolada do “movimento real” e, assim, se transformem em mera ideologia, seja em forma de crença para diminuir o sofrimento dos dominados ou de alívio de consciência aos dominadores, já que o ideal é para o futuro e está dissociado do movimento social real presente. 

Assim como a compreensão do movimento histórico da realidade é influenciada pela maneira como a concebemos, também a noção de utopia está imbricada nesta mesma dinâmica cognoscitiva. Qual é a gênese histórica de uma idéia? O que surge primeiramente: um objeto em si ou a idéia que dele temos? Há uma tendência de concebermos esse duplo aspecto do conhecimento de forma isolada, priorizando a idéia, já que sem ela não teríamos consciência do objeto. É essa a base do idealismo, que pressupõe a realidade como resultante de uma idéia e o que não pode ser pensado simplesmente não existe. Por outro lado, há uma tendência de concebermos a realidade como existente, sem, no entanto, apreendê-la em sua dimensão histórica, de forma que somos enganados pela sua aparência cotidiana. Isso significaria a impossibilidade da utopia, pois, se todas as idéias estivessem, de fato, determinadas pela realidade cotidianamente existente, não haveria condições para conhecê-la a ponto de modificá-la.

Diante dessa dicotomia, entre uma utopia idealizada e a impossibilidade de haver utopias, certamente o materialismo histórico constitui a melhor síntese produzida até hoje: o ponto de partida de uma idéia é a realidade histórica e a identificação das contradições em seu movimento é que permite conhecê-la a ponto de transformá-la. A complexidade dessa concepção, entretanto, é imensa: a interpretação do passado permite conhecer melhor o presente, mas este, ao ser conhecido, já se converte em passado, cuja interpretação precisa ser constantemente renovada, tendo em vista que a história já não é mais a mesma. Portanto, somente a crítica histórica, o pensamento crítico acumulado subjetivamente pela humanidade, é capaz de revelar elementos que podem conduzir à compreensão objetiva da realidade.

A identificação de tendências históricas, o que nos é permitido conhecer, por sua vez, demonstra que a totalidade apresenta muitas “possibilidades de realização”. As possibilidades implícitas no movimento real são sempre maiores do que a “realidade em si” e, por isso, nenhuma é inevitável, fora da “realidade”, enquanto esta “vai sendo”. Assim, qualquer tentativa de anunciar possibilidades futuras é utópica, pois ela depende de um vir-a-ser (que ainda não é). Uma utopia, portanto, não é algo ilusório, e sim algo “que não é, mas pode vir a ser”. Neste sentido, para mudar a realidade, evidentemente, não basta ter uma utopia, é necessário identificar as contradições históricas objetivas que apontam para a possibilidade de superação real. Mas, também isto passa a ser uma utopia, pois “ainda não é”.

A separação de idéias da sua base histórica, difundindo-as em forma de princípios necessários, constitui a base do dogmatismo, seja ele de caráter conservador ou voluntarista. Uma utopia, entretanto, deixa de ser uma idéia abstrata se estiver fundada no movimento histórico real, e se transforma naquilo que Ernst Bloch identifica como uma “utopia real”: a intenção utópica de avançar, o princípio esperança, a antecipação real daquilo que não é garantido vivenciar, mas que move a humanidade e dá real sentido ao viver, ao “vir-a-ser” mais humano. Como dizia Victor Hugo, não há nada mais poderoso do que uma idéia cujo tempo chegou.

Revista Espaço Acadêmico nº56 – Janeiro 2006