A experiência de viver na Alemanha

Antônio Inácio Andrioli*

 

Antes de vir à Alemanha, em 2001, um professor brasileiro me dizia que conhecer a Alemanha, sua cultura, a forma de pensar de seu povo e a experiência de viver no exterior seriam tão importantes como o próprio doutorado. Após cinco anos de vivência na Alemanha, só posso confirmar isso: as experiências no dia-a-dia, os muitos encontros, a adaptação a uma outra cultura, o desafio de estudar de forma intensiva e autônoma numa outra língua e escrever a tese de doutorado constituíram ambos partes integrantes de um amplo processo de aprendizagem.

Na vida cotidiana fui, constantemente, confrontado com a possibilidade de comparar os dois países, o que conduz à formação de preconceitos com relação à Alemanha e descobertas em relação ao Brasil. Inicialmente, há a tendência de achar que no país da gente tudo é melhor; depois, o contato com alemães que estudam o Brasil há tanto tempo que, por vezes, tive a impressão de que conhecem o nosso país melhor do que nós (pelo menos o norte brasileiro, que eu, como gaúcho, conheço muito pouco). É claro que, como estrangeiro, a gente observa muito mais as coisas, porque tudo é novo e se está interessado em todos os acontecimentos. Assim, eu fui, positivamente, surpreendido com vários debates acerca da situação brasileira que, nessa forma, são difíceis de serem encontradas no Brasil. É interessante também que, estando no exterior, a gente passa a sentir mais brasileiro.

Eu tenho a sensação de que a minha imagem do Brasil foi se modificando da mesma forma que a imagem da Alemanha que eu tinha. Seres humanos se adaptam a situações e as idéias vão se modificando na proporção do quanto estamos dispostos a conhecer o outro. Nesse sentido, ajuda muito o ponto de vista dos alemães com relação ao Brasil, pois me parece que os brasileiros são, relativamente, bem aceitos na Alemanha. As causas disso eu não consigo compreender plenamente, mas já é uma vantagem para um processo de integração, se temos a percepção de que somos bem vindos a um país.

É claro que também existem dificuldades, especialmente no que se refere ao idioma, ao estilo de vida e às relações cotidianas entre as pessoas, ao clima de intenso inverno e pouca luz solar, ao comportamento de autoridades, prestadores de serviços e à forma burocratizada e distanciada como os consumidores e cidadãos são tratados em geral neste país. O relativo isolamento das pessoas, a indiferença e a ausência de solidariedade, que pode ser observável na maioria das relações sociais, chega a indignar em muitas situações, nas quais o individualismo exacerbado do assim chamado Primeiro Mundo parece impedir relacionamentos mais intensos entre os seres humanos. Além disso, o desprezo à emoção, o apego ao formalismo, que dificulta a aproximação entre as pessoas, o crescente consumismo, o desejo de acumulação de capital e a declarada falta de tempo por parte da maioria dos alemães, contribuem para a constituição de um ambiente social em que a acentuada concorrência, a disciplina com relação ao trabalho e a fixação em objetivos de caráter individual tendem a sufocar os espaços e as oportunidades de expressão da intersubjetividade humana. O extremo apego à noção de ordem e organização, o constante desejo de regramento, institucionalização e controle geram a impressão de que somos controlados, o tempo todo, por uma estrutura invisível, como se fôssemos suspeitos de algo e tivéssemos que comprovar, de antemão, que não somos “maus”, “preguiçosos” ou “indisciplinados”. E isso também se revela nos métodos de ensino e pesquisa, onde provas, notas e outros mecanismos de controle e classificação continuam sendo bem mais rigorosamente aplicados do que no Brasil.

Por outro lado, o relativo isolamento social das pessoas permite uma maior objetividade e um melhor exercício da atividade crítica, uma vez que a crítica a idéias tende a ser separada da crítica à pessoa, o que, para um brasileiro, parece algo “quase impossível”. A noção de respeito à “liberdade do indivíduo”, certamente uma herança do liberalismo, constitui um ambiente propício ao desenvolvimento de qualidades individuais como a leitura, a pesquisa acadêmica, o planejamento do tempo e o estudo em geral.

Possivelmente, esse ambiente social, aliado a longos períodos de inverno, em que a permanência das pessoas em casa foi exigindo um regramento do comportamento desde a infância, educando para o silêncio, para a intensa ocupação do tempo disponível e para a disciplina individual, contribuiu significativamente para o histórico avanço da cultura intelectual e artística do povo alemão (seus famosos pensadores, filósofos, poetas e músicos clássicos). A oportunidade de ter acesso a essa herança cultural e ao estilo acadêmico ainda predominante, faz da Alemanha um dos países mais interessantes para se estudar, mesmo que, para viver, como brasileiros, obviamente, continuemos a preferir o Brasil.

Através do engajamento social para além da vida universitária e o contato com a sociedade civil alemã eu tive a oportunidade de contribuir como palestrante e jornalista nesse país. Nessas oportunidades, percebi a importância que nós estrangeiros podemos ter na Alemanha, em termos de intercâmbio de experiências. Nas diversas oportunidades abordando temas como o Orçamento Participativo e o Fórum Social Mundial de Porto Alegre ou o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), foi possível perceber o quanto nossas experiências sociais e políticas despertam esperanças por aqui, num período em que tantas pessoas na Europa se sentem impotentes diante da política. Através disso, eu fui descobrindo, cada vez mais, o quanto, para além das diferenças culturais, os seres humanos possuem em comum, no mundo todo. A presença na Alemanha durante este período de cinco anos, que se encerra agora em 2006, eu avalio como sendo um profundo intercâmbio de experiências culturais, políticas e sociais, no qual eu estive constantemente confrontado por dois desafios: o de contribuir cientificamente em uma determinada área do conhecimento e o de dialogar interculturalmente para contribuir na construção de alternativas para uma sociedade mais justa, democrática e pacífica aqui e para todos.

* Professor de Unijuí. Doutor em Ciências Econômicas e Sociais pela Universidade de Osnabrück – Alemanha.

 

Revista Eletrônica Espaço Acadêmico 2006