O governo Lula: continuidade da política neoliberal no Brasil?

 

Por Antônio Inácio Andrioli* e Stefan Schmalz**

Com Luiz Inácio Lula da Silva o Brasil tem como presidente, pela primeira vez na história, uma personalidade que não provém de setores dominantes da sociedade brasileira e que não ostenta títulos acadêmicos. Lula tem sua origem junto ao povo humilde e atuou por muito tempo como trabalhador e sindicalista metalúrgico na indústria automobilística. O governo Lula, eleito em 2002, não é apenas fruto de uma vitória eleitoral, ele é o resultado de um período importante do desenvolvimento brasileiro. A imponente vitória eleitoral, com 61,3% dos votos, está vinculada a um longo processo de mobilização da classe trabalhadora, à redemocratização do país e à formulação de concretas alternativas políticas por parte da esquerda brasileira, cujo reconhecimento conduziu, por exemplo, à realização do Fórum Social Mundial.    

Uma avaliação política do governo brasileiro, entretanto, não é uma tarefa fácil. Esperanças e frustrações estão mutuamente imbricadas. A crítica no interior da esquerda brasileira e internacional vem se intensificando e isso não é por acaso: muitas ações do governo estão em contradição com o programa de governo apresentado pelo PT nas eleições e contrariam a tradição programática deste que é o maior partido de esquerda na América Latina. A política econômica restritiva, como conseqüência direta da continuidade do pagamento da dívida, perpetua a dependência econômica do país e reduz a margem de manobra política e social do governo, impedindo importantes mudanças de interesse da maioria da população. O governo está composto por uma ampla aliança de diversos partidos, que representam interesses contrários no interior da sociedade brasileira. Essa complexa situação apresenta um conjunto de problemas e questionamentos: como se pode compreender as contradições existentes? Pode-se esperar deste governo uma mudança política no Brasil ou se trata, em princípio, de uma continuidade da política neoliberal?                                                                                             

O maior problema é a política econômica diametralmente oposta à maioria das demais áreas do governo. Se fala de um governo de esquerda com um programa econômico liberal, em continuidade à política econômica do governo FHC. Essa política foi inicialmente acompanhada de acordos regulares com o FMI (vários deles ainda realizados no governo anterior) que exigiam a implementação de medidas estruturais, conduzindo o governo brasileiro ao estabelecimento da meta de superávit primário (a diferença entre receitas e gastos do Estado sem considerar os serviços da dívida) de 4,25% e ao comprometimento com a tarefa de tornar o Banco Central um órgão independente das decisões governamentais. Essa política de pagamento de juros da dívida continua assegurada mesmo após o fim do último acordo com o FMI e o pagamento antecipado de 15,5 milhões de dólares ao final de 2005. A base dessa estratégia econômica é a política de altos juros e o apoio às exportações. O incentivo às exportações permitiu um superávit na balança comercial da ordem de 24,8 milhões de dólares em 2003, 33,7 milhões em 2004 e 44,8 milhões em 2005, que serviram, prioritariamente, ao pagamento de dívidas do país. No que se refere à política de juros, após uma temporária redução da taxa Selic (Sistema Especial de Liquidação e de Custódia para Títulos Federais, que baliza as taxas de juros cobradas pelo mercado) de 25,5% em janeiro de 2003 para 16% em abril de 2004, se sucedeu um novo aumento para 19,75% em julho de 2005. Em seguida, os juros foram reduzidos na proporção de 0,5% ao mês até atingirem 16,5% em março de 2006. Por isso, com a renúncia do Ministro da Fazenda Antonio Palocci, em abril de 2006, muitos aguardavam significativas mudanças. Os principais elementos da política econômica, no entanto, continuam mantidos na gestão do novo ministro Guido Mantega: os juros foram reduzidos de 16,5% para 15,75% juntamente com o anúncio de que o pagamento da dívida externa segue sendo uma prioridade para o governo.

Se, por um lado, a alta de juros protege o país de uma “fuga de capitais”, por outro, ela estrangula o mercado interno. Assim, os primeiros resultados dessa política econômica inicialmente surpreenderam totalmente seus maiores críticos no interior da esquerda petista. Se em 2003 ainda parecia que o governo estava preso a um círculo vicioso que conduzia a baixos investimentos, ao aumento da taxa de desemprego e a perdas reais de renda para a maioria da população, em 2004 pôde ser observada uma outra tendência. Em decorrência do massivo crescimento nas exportações (de 30,4 bilhões de dólares em 2002 para 96,5 bilhões em 2004) foi possível retirar o Brasil da recessão, apresentando um crescimento econômico de 5,1%, apesar da política de cortes nos gastos públicos. A limitação da ação governamental em decorrência do pagamento de serviços da dívida, entretanto, cria uma situação novamente desfavorável em seguida, na qual apenas curtos e insuficientes ciclos de crescimento econômico são possíveis. Por isso, a conjuntura favorável, verificada em 2004, parece findada já em 2005: a taxa de crescimento econômico do país caiu para 2,3%. Em 2006, provavelmente, os investimentos aumentarão em função da campanha eleitoral em nível federal e estadual, o que tende a estabilizar a dinâmica econômica. O desenvolvimento econômico após o mês de outubro de 2006, porém, permanece uma incógnita.  

Nesse sentido, é possível afirmar que o período de transição anunciado pelo governo Lula e por parte do PT não existe, pois, até o presente momento não foram criadas condições que pudessem permitir a passagem a um novo período, em nova direção. Ao contrário: a economia brasileira continua numa situação precária sob o risco constante de que se instaure uma nova crise financeira e monetária, pois a tão propagada “estabilidade” econômica continua extremamente dependente de capital especulativo volátil, atraído pelas altas taxas de juros. A continuidade da atual política econômica parece estar assegurada: no Ministério da Fazenda já há projeções de metas de superávit primário até o ano de 2011. Essa orientação econômica ortodoxa do governo Lula vem provocando inúmeros conflitos políticos, pois os gastos públicos continuam fortemente limitados pela obrigação com o pagamento da dívida. No orçamento de 2004, por exemplo, estavam previstos 87,7 bilhões de dólares para investimentos sociais enquanto o pagamento de dívidas estava orçado em 173 bilhões, dos quais 45 bilhões exclusivamente para o pagamento da dívida externa. Esse problema se reflete em diferentes iniciativas sociais e políticas do governo que, em função da margem de manobra financeira extrema limitada, acabam revelando um caráter, na maioria dos casos, ambivalente.

Com o Programa Fome Zero, em seu estágio inicial, o governo disponibilizou uma ajuda emergencial para atingir os 46 milhões de brasileiros subnutridos. Em 2004 o referido programa foi ampliado com a unificação de diferentes programas sociais na área da educação e da saúde, através do Programa Bolsa Família, o que vem beneficiando em torno de 9 milhões de famílias com a destinação de cerca  de 73 reais mensais. A previsão é de atingir 11,4 milhões de famílias carentes com esse programa até o final de 2006 e, a partir de 2010, transformá-lo em um programa de Renda Básica, através do qual todo cidadão brasileiro terá acesso a um mínimo de 40 reais mensais. Uma outra reforma importante é o gradativo aumento do salário mínimo de 200 reais até atingir 350 reais em abril de 2006. Esse aumento representa um ganho real de 30% na renda dos trabalhadores, mas ainda está muito aquém das expectativas dos sindicalistas.

A reforma mais polêmica realizada pelo governo Lula, certamente, é a Reforma da Previdência. Os benefícios previdenciários de funcionários públicos foram reduzidos com a justificativa de que o regime previdenciário até então em vigor (uma relíquia dos governos militares), estaria privilegiando trabalhadores do setor público em comparação aos do setor privado e que os recursos destinados para manter esse sistema com um déficit anual de 4%  do Produto Interno Bruto seriam melhor aproveitados se fossem investidos em programas sociais. Com a reforma, a idade mínima para a aposentadoria de mulheres aumentou de 48 para 55 anos e para os homens de 53 para 60 anos e o governo instituiu o teto máximo da aposentadoria no setor público em 1.561 reais, igualando-o ao teto dos trabalhadores no setor privado. Benefícios maiores, de agora em diante, só estão previstos em caso de pagamento de contribuição adicional no sistema de previdenciária privada.  O projeto de Reforma da Previdência foi implementado pelo governo apesar da resistência dos fucionários públicos e, por isso, contra parte da base histórica de apoio social do PT. Várias greves e protestos se sucederam com a participação de mais de 40 mil manifestantes e, concretamente para o PT, esta reforma (que, para muitos continua sendo uma contra-reforma) resultou na expulsão da senadora Heloísa Helena e dos deputados João Batista Oliveira de Araújo (o Babá), Luciana Genro e João Fontes, os quais se negaram a votar favoravelmente ao projeto proposto pelo governo (ver artigo 2004: um ano decisivo para o PT e o governo Lula http://www.espacoacademico.com.br/032/32pt_andrioli.htm). 

Na política externa, contudo, podem ser verificadas significativas mudanças de rumo. Em novembro de 2003 uma aliança entre os governos da Argentina, Brasil e Venezuela impediu a continuidade de implementação da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) na forma como esta estava sendo prevista segundo os interesses capitalistas dos Estados Unidos. Em 2004 foi interrompido o processo de negociações em torno do acordo neoliberal de associação entre o Mercosul e a União Européia, em função dos interesses divergentes existentes. Em contraposição, o governo brasileiro reativou as negociações com vistas à integração sulamericana no Mercosul. Além da assinatura do acordo de livre comércio com a Comunidade dos Países Andinos (Bolívia, Equador, Colômbia e Peru), ao final de 2004, o Mercosul foi ampliado com a associação do Peru, da Colômbia e do Equador e, a partir de 2006, a Venezuela passa a integrar o bloco, inicialmente com direitos limitados. O Mercosul também foi fortalecido com a criação das instituições supranacionais, como o tribunal, a comissão de representantes permanentes (seguindo o modelo da União Européia) e o cargo da presidência. Porém, os conflitos entres os países membros continuam, como no caso da construção de duas indústrias de celulose na fronteira uruguaia do Rio Uruguai com a Argentina, acusadas de ameaçar o meio ambiente. O passo seguinte nos esforços de integração é a conformação da CSN (Comunidade Sulamericana de Nações), criada no dia 9 de dezembro de 2004, contando com a participação de todos os países sulamericanos, com exceção da Guiana Francesa.  A CSN, entretanto, não apresentou uma dinâmica de integração mais acelerada até o presente momento. Com a criação dos fundos estruturais e a implementação de uma base comum para a política social em junho de 2005 certamente  foram dados os primeiros passos rumo à substituição do modelo de integração neoliberal, até então vigente, por um outro, alicerçado sobre uma estratégia mais keynesiana.

Essa reorientação da política externa brasileira vem sendo complementada pela intensificação da cooperação entre os países do sul, a qual pode ser verificada principalmente através das alianças estratégicas com a África do Sul e a Índia no assim chamado Fórum de Diálogo entre os três países, da intensiva parceria com a China e da assinatura de inúmeros acordos bilaterais de livre comércio com países periféricos do Sub-Sahara africano e do Oriente Médio. Os primeiros resultados desse modelo de cooperação podem ser percebidos através da redução da tradicional dependência comercial de grandes centros e na aposta em acordos multilaterais privilegiando países periféricos e semi-periféricos. A política externa predominantemente positiva do governo Lula, no entanto, está em contradição com a política macroeconômica. O misto de estímulo a exportações, corte de gastos públicos e “pacto social” não tem condições de alterar os rumos da economia interna no Brasil, a qual também não será significativamente influenciada pela reorientação da política externa.

As perspectivas de um possível segundo governo Lula, no entanto, ainda continuam em aberto. Em caso de reeleição, podemos visualizar três cenários:

1) uma combinação de pequenas mudanças em benefício das classes subalternas com a manutenção da política econômica conservadora – uma espécie de “social-liberalismo”, que está em contradição com a história do PT, mas tem caracterizado o governo Lula até agora;

2) a implementação do programa “Um Brasil para todos”, após um período de transição, o que corresponderia às declarações da direção nacional do PT, mas estaria em contradição com a política econômica desenvolvida até agora;

3) a derrota do projeto de governo em função das inúmeras contradições internas.

A opção pela continuidade do projeto de governo depende, em nosso entendimento, de cinco elementos fundamentais para a análise política atual:

1) o suposto escândalo de corrupção, envolvendo funcionários da direção do PT, acusados de comprar deputados com a intenção de assegurar uma maioria favorável ao governo na Câmara de Deputados (o assim chamado mensalão), evidenciou problemas estruturais da posição minoritária do partido no Congresso Nacional, colocou em questão o desenvolvimento do partido, até então considerado absolutamente livre de corrupção, e apontou para o perigo de uma possível falta de governabilidade política do governo diante de uma crise de legitimidade do PT. Desde junho de 2005 o partido está confrontado com sua maior crise na história: tanto o Ministro da Casa Civil, José Dirceu, como o presidente do PT, José Genoíno, e o Ministro da Fazenda, Antonio Palocci, renunciaram a seus cargos. Nesse sentido, a paralisia política do governo decorrente da crise no PT pode ser responsável por um possível fim do projeto de centro-esquerda vitorioso em 2002;

2) O resultado das eleições municipais em outubro de 2004 representou o início do processo de reorganização da direita no país, cujo sucesso eleitoral, principalmente no sul e no sudeste, evidenciou a fragilidade do PT, embora este tenha sido vitorioso em 8 capitais e, no total, em 411 municípios.  As derrotas simbólicas no município de Porto Alegre, até então reduto petista e sede do Fórum Social Mundial, e na maior cidade do país, São Paulo, contribuíram para uma espécie de regeneração das forças de oposição, com vistas ao enfraquecimento da base de sustentação política do governo Lula e a preparação para sua possível derrota em 2006. Precisamente a vitória do candidato do PSDB à prefeitura de São Paulo reforçou uma nova aliança do PFL com o ex-governador paulista e atual candidato à Presidência da República, Geraldo Alckmin, como eixo de fusão, a partir do qual as forças conservadoras contrárias ao governo Lula encontraram uma alternativa eleitoral. Até o presente momento, de acordo com as atuais pesquisas eleitorais, entretanto, a candidatura de Alckmin carece de popularidade junto ao eleitorado;

3) A continuidade do projeto “social-liberal” do governo Lula somente terá uma chance a médio prazo se o Brasil puder contar com um contexto extremamente favorável no mercado internacional, com altos preços para matérias-primas e com altas taxas de crescimento econômico no país, que permitam uma relativa distribuição de renda. Mesmo assim, em caso de manutenção do atual rumo, o governo corre o risco de uma maior desmobilização social e a transformação do PT em mera correia de transmissão do governo;

4) Um retorno do governo à tradição programática do PT só será possível caso ocorra uma massiva mobilização política e se for intensificada a pressão por parte das esquerdas.  Objetivamente existe, por exemplo, entre outras forças políticas, um potencial de mobilização de mais de  1,5 milhão de pessoas sem terra no MST, capaz de influenciar fortemente os rumos do governo. Mas, enquanto as forças políticas contrárias atuarem de forma relativamente coerente e o movimento sindical brasileiro permanecer desmobilizado, uma tendência de mudança no atual rumo político continua bastante improvável. Nas atuais circunstâncias, uma gradual mudança na correlação de forças também poderia ser favorecida com uma exitosa construção do novo partido P-SOL, o qual procura ocupar o vácuo político deixado pelo PT à sua esquerda, obrigando este a reassumir suas concepções originais com maior intensidade, caso não queira perder espaço político a longo prazo;

5) O campo de batalha política provavelmente mais importante, entretanto, pode continuar sendo o próprio PT. A discussão em torno do escândalo de corrupção e as eleições diretas à direção partidária em setembro de 2005 representaram uma das últimas oportunidades de debate interno do PT com vistas à mudança de rumos do governo antes das eleições de 2006. Para isso teria sido decisiva a unidade das principais tendências da esquerda petista, pois elas têm uma forte influência sobre a maioria dos movimentos sociais no país, os quais não estão dispostos a construir um caminho político isolado do PT e a correr o risco de um isolamento político na atual conjuntura.  

Apesar da conhecida falta de unidade da esquerda petista, a apertada vitória de Ricardo Berzoini à presidência do PT demonstrou o enfraquecimento do assim chamado Campo Majoritário e o aumento da insatisfação com os rumos do governo. Por isso, apesar da derrota por uma pequena margem de votos a esquerda petista saiu fortalecida das eleições internas e aproveita a situação favorável para reforçar suas posições e aumentar as chances de construção de uma perspectiva política que transcenda o projeto social-liberal ainda hegemônico.

As perspectivas do PT dependem, em grande medida, dos resultados das eleições no próximo mês de outubro que, de acordo com as mais recentes pesquisas eleitorais, podem ser vencidas por Lula. Mas, será que as chances do PT já não foram desperdiçadas? Será que um segundo governo Lula ainda terá condições de implementar as tão esperadas mudanças sociais? Resumindo: será que as esperanças num “Brasil para todos“ ainda existem ou esse governo acabou com elas, ao decepcionar, desmoralizar e, com isso, ter prepararado sua própria derrota? São muitas perguntas que somente poderão ser respondidas de forma mais satisfatória ao final deste ano.

 

 

 

[1] O presente artigo é uma versão resumida e atualizada do texto Brasilien: politische Wende oder Fortsetzung neoliberaler Politik? (Brasil: mudança política ou continuidade da política neoliberal?), publicado pelos respectivos autores, originalmente em alemão, no livro Lateinamerika: Verfall neoliberaler Hegemonie? BORIS, Dieter/SCHMALZ, Stefan/TITTOR, Anne (Hrsg.). Hamburg: VSA-Verlag, November 2005, p. 192-212. ISBN 3-89965-143-X. ©VSA- Verlag 2005.

* Doutorando em Ciências Sociais na Universidade de Osnabrück.

** Doutorando e colaborador científico no Instituto de Ciência Política da Universidade de Marburgo.