10 ANOS DE UFFS: entre a contingência e a utopia

Dia 15 de setembro de 2009 é uma data muito importante para a UFFS. É o dia da assinatura da sua lei de criação. É o nascimento da nossa universidade e, por isso, comemoramos, nessa data, o seu aniversário. A nossa universidade foi crescendo, se consolidando e, podemos dizer, com segurança, que está implantada. Em 2009, na Comissão de Implantação, nomeada em fevereiro daquele ano, nos perguntávamos como ela seria, quem seriam seus estudantes, servidores e quais seriam suas grandes causas. Em 2010, os primeiros servidores e estudantes tentavam imaginar como ela seria em 10 anos. Agora, completados seus primeiros 10 anos, podemos olhar para sua história e identificar no seu percurso suas características, suas contradições e seus grandes desafios. A UFFS, agora, é uma realidade, uma instituição que traz consigo um projeto, uma identidade e uma utopia: ser uma universidade pública e popular!

A realidade, que está sendo, é o somatório do que está aí mais o que não está aí, ou seja, o que já foi e o que pode vir a ser. A sua construção não é determinada nem ocorre por acaso. Ela é fruto da ação humana, diante de condições objetivas e subjetivas. Entre o contexto e a vontade, nessa contingência de termos que considerar as condições para agir, sabemos que nossa ação diante delas é decisiva para o que está sendo. Por isso, a utopia da UFFS segue sendo construída na experiência cotidiana e na reflexão sobre ela.

Ao concluirmos nosso trabalho na Reitoria, esta reflexão é pertinente, tanto sobre as condições e seu contexto quanto à forma como agimos nesse período. Como a UFFS teria sido se as condições fossem outras? Como ela poderia ter sido se, diante das condições que tivemos, tivéssemos agido diferente? Como a UFFS foi construída em nossa gestão na Reitoria e como será daqui para a frente, diante de novas condições e uma outra Reitoria? Não há como saber como ela teria sido de forma diferente, pois não podemos testar o que não foi. Tratamos, neste texto, portanto, da história da UFFS, partindo do seu contexto de criação, que surge da luta social, assumindo grandes causas, que ensejaram muitos embates, disputas e contradições. O resultado desses 10 anos é, sem dúvida, de muitas conquistas. Por isso, a universidade precisa resistir e avançar diante dos novos desafios. Sua utopia, o projeto de universidade pública e popular, segue em construção e depende de novas ações, diante das atuais e futuras condições.

O contexto da criação da UFFS

A UFFS surgiu num contexto histórico favorável à expansão da educação e, em especial, do ensino superior no Brasil. Esse contexto, obviamente, só se tornou favorável porque resultou de décadas de muita luta coletiva, eleição e decisão de governos que assumiram a expansão da educação, o investimento em ciência, tecnologia e inovação como políticas públicas, fundamentais para a soberania do país e o seu desenvolvimento de forma sustentável. Além disso, esta universidade foi construída no interior do Sul do Brasil, na fronteira oeste com a Argentina, no lado oposto da maioria das capitais, onde, até então, estava localizada a maioria das nossas universidades federais. Expandir o acesso para mais pessoas, interiorizar a oferta de vagas e ampliar as oportunidades para um imenso público antes excluído, poderiam ser, resumidamente, os grandes objetivos que nortearam o contexto de criação da UFFS.

Uma universidade que surge da luta social

A região de abrangência da UFFS é conhecida como Mesorregião Grande Fronteira do Mercosul, que dá origem ao seu nome. A região e seu entorno abrangem cerca de 400 municípios do Sudoeste e Centro-Oeste do Paraná, Oeste de Santa Catarina, Norte e Noroeste do Rio Grande do Sul. Essa região é economicamente marcada pela agricultura familiar e camponesa, pela agroindústria cooperativa, pelo associativismo e pelos pequenos empreendimentos. Ela também é berço dos maiores movimentos sociais do campo, da luta pela Reforma Agrária, das mulheres camponesas, dos agricultores familiares, da resistência contra as grandes barragens hidrelétricas e da luta dos povos indígenas.

Duas grandes forças sociais culminaram para o movimento pró-UFFS desde o seu início: a Via Campesina e a Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (FETRAF). A elas se somaram muitos outros movimentos, incluindo prefeitos, vereadores, sindicalistas, cooperativistas, ONGs, o movimento estudantil secundarista e universitário. O movimento se unificou e foi conseguindo a adesão de deputados e senadores, culminando na decisão de governo em criar a UFFS em 2009.

Em resumo, portanto, há um forte movimento social com uma pauta comum e, ao mesmo tempo, um governo federal que aceitou a demanda construída nas diversas regiões, que se uniram em torno da proposta de construção de uma universidade federal multicampi nos três estados do sul do Brasil. Dificilmente haverá um contexto político favorável dessa forma novamente. Essa oportunidade de construir uma nova universidade, nessas condições, certamente, foi única, ao menos para a nossa geração.

A ideia de universidade pública e popular

Surgida no contexto de ampliação das políticas públicas no país e sendo fruto de uma intensa mobilização social de décadas em torno da necessidade de uma universidade pública, gratuita e de qualidade na região, a UFFS também passou a incorporar, desde sua origem, a ideia de ser uma universidade popular. Isso, evidentemente, a coloca no desafio de inovar e não repetir a tradição elitista, corporativista, tendencialmente conservadora e meritocrática da maioria das universidades brasileiras. Há, também, a experiência das universidades comunitárias presentes e atuantes na região a ser considerada, com seu foco maior no ensino, de direito privado e não gratuitas, mas com uma longa experiência de caráter público e sem fins lucrativos.

Esse desafio de aprender com as experiências e contradições das universidades já existentes e, ao mesmo tempo, propor inovações, marca a trajetória inicial de construção da UFFS. O que imediatamente esteve no foco da sua dimensão popular foi a política de acesso, ou seja, garantir que a universidade priorizasse os estudantes historicamente excluídos de ingressar no ensino superior, especialmente os trabalhadores. Por isso, mesmo antes da lei de cotas, a UFFS já oferecia, de forma inédita no Brasil, 90% das suas vagas a estudantes de escola pública. A ampliação desse acesso, porém, ainda não foi concluída, tendo em vista que a oferta de vagas é muito menor em relação ao número de estudantes que poderiam ingressar. E isso, em especial, nos públicos historicamente excluídos, como as comunidades tradicionais, grupos discriminados na sociedade e, mais recentemente, os imigrantes. Para esses públicos, a universidade tem ampliado, até agora, de forma crescente e qualificada, o acesso e também a política de permanência, mediante um conjunto de bolsas e auxílios a todos os estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, sem filas de espera. Somos uma das poucas universidades federais do Brasil com uma Política de Assistência Estudantil clara, definida e aprovada com ampla participação dos estudantes.

Um segundo aspecto importante é a oportunidade dos historicamente excluídos terem a melhor estrutura acadêmica possível, garantindo seu êxito na aprendizagem e na construção de conhecimento. Nesse aspecto, a universidade, para ser popular, teria que assumir um novo tipo de formação universitária, priorizando a ação dialógica, crítica, interdisciplinar e emancipadora, superando a lógica reducionista, reprodutivista, fragmentadora e classificatória da educação tradicional. Nisso, certamente, ainda temos muito a avançar pedagogicamente, especialmente nos métodos de avaliação.

Além disso, surge a importância de a universidade ter que considerar o tempo, o ambiente e a forma de aprendizagem desse novo perfil de estudante, contemplado com a ampliação do acesso. Isso pressupõe uma presença mais integral dos estudantes na universidade, a oferta de cursos mais próximos às comunidades e a disponibilização de horários diferenciados. A curricularização de atividades de extensão, cultura e pesquisa e a pedagogia da alternância são bons exemplos disso.

Um terceiro elemento a destacar é a possibilidade de os estudantes se apropriarem da construção do conhecimento científico durante o seu processo de formação e, em interação com os demais pesquisadores da universidade, poderem contribuir para a superação de problemas da região, do país e do mundo. Essa terceira dimensão do popular, expressa em seu PDI (Plano de Desenvolvimento Institucional), do seu compromisso social com a região, da universidade estar a serviço do povo, amplia a própria ideia de instituição pública e situa a educação superior na perspectiva de se integrar às grandes causas populares, dialogando com os outros saberes que estão sendo construídos nas comunidades.

Foi com esse pensamento que, logo em 2010, no âmbito de uma grande conferência, a COEPE (Conferência de Ensino, Pesquisa e Extensão), reunindo milhares de pessoas nos cinco campi, foram definidos os grandes rumos para a construção da nova universidade. Esses rumos foram reafirmados e atualizados sete anos depois, com a segunda edição da COEPE, possibilitando maior participação da comunidade acadêmica, naquele momento já quase toda constituída. Qual universidade nesse país teve tanta participação social e tanta democracia direta na definição de seus grandes rumos desde o seu início e de forma permanente através de processos estatuintes, seminários, conferências, leituras comunitárias e audiências públicas?

A criação do Conselho Estratégico e Social, como órgão consultivo, com ampla e irrestrita participação da sociedade civil organizada, assim como dos conselhos comunitários em todos os campi, com a mesma atribuição em nível local, também aponta para esta mesma perspectiva: ampliar a participação, a democracia e o controle social. A UFFS é a única universidade federal que reconhece, em seu estatuto, a comunidade regional como integrante da comunidade universitária, integrando a sociedade civil organizada em seus conselhos e decisões, inclusive nas eleições de reitor, vice-reitor e diretores de campus. É importante destacar que – na UFFS – a sociedade civil organizada tem respeitada a sua autonomia de organização desde o seu início. Ou seja, não é a comunidade acadêmica que organiza a comunidade regional e tampouco nela interfere na sua forma de participação e representação.

Podemos sintetizar essa referência com a ideia de que uma universidade popular se constrói com a clara disposição de pôr em curso uma dinâmica que aposta numa crescente participação popular sem ter medo da democracia. Afinal, a participação só tem sentido se o próprio espaço em que ela acontece pode ser constantemente modificado e transformado. Da mesma forma, a inclusão social não deve ocorrer por merecimento, mas como afirmação de um direito. Por isso, temos o desafio e a necessidade de nos opor ao caráter seletivo, elitista, competitivo e excludente de educação, para impedir novas formas de evasão, principalmente as causadas pela retenção e repetência.

Ser popular é ser do povo. É estar a serviço dos que mais precisam: os desfavorecidos, os que historicamente não tiveram acesso, os trabalhadores, os desempregados, os agricultores, os sem-terra, os posseiros, os ribeirinhos, os faxinalenses, os nativos, os caboclos, os indígenas, os quilombolas, os negros, os imigrantes, os que apresentam as maiores dificuldades, os excluídos, os marginalizados, os pobres, os explorados, os injustiçados, os discriminados e os oprimidos.

As grandes causas da UFFS

A inclusão social é considerada a grande pauta que unificou o movimento pró-UFFS e, sem dúvida, caracterizou a universidade nesses primeiros 10 anos. Quando o Ministro da Educação, ao nomear a Comissão de Implantação (a primeira da história do país a ter representantes dos movimentos sociais), em fevereiro de 2009, desafiava os seus membros a construir uma universidade inovadora, essa pauta era o nosso maior desafio. No ato de assinatura da lei de criação, o Presidente da República se referia à UFFS como sendo a primeira universidade dos trabalhadores do Brasil. Ou seja, o grande desafio era inverter a lógica do acesso à educação superior neste país, levando as universidades públicas a priorizar os estudantes historicamente excluídos e os que mais dela precisam.

Nesse esforço, as políticas de expansão também avançaram na sequência e a UFFS foi premiada, reconhecida nacional e mundialmente, por ser a instituição que se antecipava a grandes pautas como o acesso de estudantes de escola pública, cotistas, trabalhadores, agricultores, indígenas e imigrantes. Portanto, além de inovar com a ampliação do acesso ao ensino superior numa região interiorana e fronteiriça, a UFFS também foi seguindo as orientações nacionais em relação às novas DCNs (Diretrizes Nacionais Curriculares).

Uma nova universidade estava para ser instalada, a primeira multicampi em três estados da federação. Os cursos de graduação, inicialmente propostos, estavam alinhados tanto com as proposições do governo federal quanto com as demandas das próprias regiões.

Também nisso se percebe uma afinidade, tanto temática quanto metodológica, na relação do movimento de implantação da universidade com a orientação do governo federal, em especial no que se refere à proposição de cursos de formação de professores, com uma clara intenção de fortalecer a escola básica pública, de onde viria a maior parte dos seus estudantes. Num contexto de abandono da oferta de licenciaturas por parte das universidades comunitárias da região, a proposição de cursos de formação de professores em todos os campi revela um claro compromisso do governo brasileiro em assumir sua responsabilidade prevista constitucionalmente e no PNE (Plano Nacional de Educação), que estava sendo implementado.

A melhoria da qualidade da escola pública, em especial do ensino médio, também levava em consideração outros propósitos relevantes: a interdisciplinaridade; a diversidade linguística em região de fronteira (destacando a oferta de espanhol nos campi mais próximos da Argentina); a oferta de conteúdos considerados deficitários na escola pública, numa tentativa de nivelamento com o Ensino Superior, suas tecnologias e linguagens (especialmente Matemática Instrumental, Estatística Básica, Leitura e Produção Textual); a contextualização histórica do conhecimento; o pensamento crítico e a formação cidadã. A forma encontrada para isso foi a divisão dos currículos dos cursos de graduação em três domínios: comum, conexo e específico. Na UFFS, portanto, em todos os cursos, há componentes curriculares comuns, oferecidos a todos os estudantes; outros que dialogam epistemologicamente entre as áreas afins; e outros que são específicos a cada curso, de acordo com suas ênfases.

A Formação Continuada de Professores está presente em todas as Licenciaturas, em vários Mestrados, Especializações e em programas de extensão com grande envergadura nacional e regional. Soma-se a esse esforço o fortalecimento da educação popular e da educação do campo, com a pedagogia da alternância, que permite maior aproximação da universidade da vida e da cultura das comunidades e dos estudantes trabalhadores. Essa valorização da identidade territorial, da cultura e dos saberes locais contribui para a formação contextualizada e maior inserção futura dos educadores numa perspectiva de transformação social da realidade.

Outra pauta original da UFFS é o seu compromisso com a sustentabilidade e as grandes causas socioambientais da humanidade. Por isso, a sua cor verde, que acompanha as grandes tendências do conhecimento científico em nível mundial, em suas diferentes áreas. Assim, por exemplo, desde o início, os cursos de Agronomia dão ênfase à Agroecologia, os de Engenharia Ambiental às Energias Renováveis e os cursos de Administração preveem, assim como o de Ciências Econômicas, a ênfase em Cooperativismo, Associativismo e Desenvolvimento.

No entanto, é claro que a ideia de sustentabilidade é transversal e, associada ao compromisso com o desenvolvimento regional e a inovação social e tecnológica, está presente também em outros cursos, como, por exemplo, Arquitetura e Urbanismo e Ciências da Computação. Ela, extrapola, inclusive, as atividades-fim da instituição, estando presente na forma como são construídos os prédios, no tratamento de resíduos, no planejamento das áreas experimentais, localizadas, majoritariamente, em áreas urbanas, de preservação ambiental e de ampla de circulação de pessoas. A gestão ambiental integra os princípios de administração da própria universidade, pois assumir a pauta ecológica pressupõe também a responsabilidade de dar o exemplo, de estar à frente da sociedade em geral na proposição de alternativas de produzir alimentos saudáveis, de produzir e economizar energia, de zelar pela qualidade da água e da vida.

A ênfase em Soberania Alimentar e Nutricional acompanha o Curso de Nutrição, assim como a temática da Saúde e Bem-estar Animal está vinculada ao Curso de Medicina Veterinária. Essas ênfases, da mesma forma como a agroecologia nos cursos de Agronomia, estão bem afinadas com as expectativas da comunidade regional, especialmente relacionadas ao fortalecimento da agricultura familiar e camponesa. Somam-se a elas as proposições de cursos de Engenharia de Alimentos e Engenharia de Aquicultura, localizados no Estado do Paraná. Em relação à temática da Segurança Alimentar e Nutricional, recentemente, foi possível aprovar, com apoio do governo federal, a construção de um Centro de Referência em Controle de Qualidade de Alimentos no Campus Realeza.

Na perspectiva da produção de alimentos, contando com as características econômicas da região e suas demandas, a UFFS também foi conquistando bastante espaço em nível nacional, sendo reconhecida por vários governos e sendo inserida no âmbito das políticas públicas de combate à fome, microcrédito, apoio à agricultura familiar e à Reforma Agrária, habitação rural, economia solidária, agroindustrialização, comercialização direta, compras governamentais, produção orgânica, distribuição de renda e fomento à melhoria da qualidade de vida no campo. Nesse contexto, é pertinente registrar o destacado trabalho desenvolvido pelo CVT (Centro Vocacional Tecnológico) localizado em Laranjeiras do Sul, do NEECOP (Núcleo de Estudos em Cooperação), das Feiras Agroecológicas, das Incubadoras de Economia Solidária, de Tecnologia Social, de Negócios e das Empresas Júnior, localizadas em vários campi.

Essas ênfases estavam presentes desde o início da UFFS e, aos poucos foram se consolidando também na proposição dos primeiros cursos de Pós-Graduação, seguindo plenamente as deliberações das duas COEPEs. Outras pautas já existiam e foram sendo fortalecidas com o tempo, como a Saúde Pública e Coletiva, especialmente presente no Curso de Enfermagem, desde o início, e ampliada com a inserção pioneira da UFFS na Política Nacional de Expansão das Escolas Médicas das Instituições Federais de Educação Superior e a consequente criação de dois cursos de Medicina, de Residências Médicas e Multiprofissionais em Saúde e na Coordenação do Programa Mais Médicos na Região Sul.

Da mesma forma, a Educação do Campo foi fortalecida com os editais do PROCAMPO (Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo), com a criação de mais dois cursos (um em Laranjeiras do Sul e outro em Erechim) e a Pedagogia da Alternância com os editais do PRONERA (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), com a criação de turmas especiais vinculadas ao Campus Erechim (Agronomia em Pontão – RS e História em Veranópolis – RS). Estava em fase de estruturação a oferta de uma turma de Ciências Econômicas no Campus Laranjeiras do Sul e há uma proposição de turma especial de Medicina, vinculada ao Campus Passo Fundo, via PRONERA.

Além dessas, duas grandes causas mais recentes foram assumidas pela UFFS de forma bastante original: os Direitos Humanos e a Educação Indígena. A criação do CRDHIR (Centro de Referência em Direitos Humanos e Igualdade Racial Marcelino Chiarello) foi decisiva para a oferta de uma nova modalidade de vagas: o PROHAITI (Programa de Acesso à Educação Superior da UFFS para Estudantes Haitianos), que atualmente foi transformado em PRÓ-IMIGRANTE (Programa de Acesso e Permanência a Estudantes Imigrantes), ampliando a acesso a todos os povos que aqui, como é característico na história de ocupação do nosso território, buscam um bom espaço para trabalhar e viver. Com a criação do CRDHIR, a UFFS também passou a atender diversas demandas da comunidade haitiana, em especial, a emissão de passaportes. Somos a primeira universidade do país a abrir vagas especiais para estudantes imigrantes, num tempo em que esse tema suscita cada vez mais relevância na geopolítica mundial.

Com o PIN (Programa de Acesso e Permanência dos Povos Indígenas) a UFFS aumentou significativamente o número de estudantes indígenas. A oferta de turmas em regime de alternância também favoreceu o ingresso desse público, que chega a ser maioria em alguns cursos. Para avançar ainda mais nessa perspectiva, em diálogo com as comunidades locais, foi proposta a criação de um campus dentro de uma área indígena (em Nonoai – RS) que, infelizmente, em função das mudanças nas políticas educacionais brasileiras não foi possível concretizar. Da mesma forma, o Centro de Referência em Educação do Campo (em Rio Bonito do Iguaçú – PR), o Instituto de Arte e Cultura das Missões (em São Luiz Gonzaga – RS) e o Campus em Concórdia – SC. De qualquer forma, esses projetos estão todos prontos, podendo ser iniciados se houver interesse governamental, especialmente com apoio orçamentário e destinação de novas vagas de servidores.

Os grandes embates, disputas e contradições

Uma universidade nova é construída com a participação de novos servidores, com novas ideias e a criação de novas instalações, estruturas e condições. Esperava-se, com isso, que a universidade não reproduzisse problemas e vícios típicos das universidades tradicionais. O grande desafio inicial foi o efetivo início das aulas logo em 29/03/2010. Essa grande decisão, tomada logo no início pela Reitoria, de atuar em estruturas provisórias e com poucos servidores disponíveis, foi difícil e muito conflituosa na época, mas fundamental para o sucesso da UFFS.

Eram necessários verdadeiros mutirões de trabalho, uma unidade de ação que priorizasse a velocidade de implantação, num período considerado favorável, do ponto de vista orçamentário e do apoio governamental. Provavelmente, esse foi o primeiro grande conflito em torno da construção da UFFS: iniciar as atividades letivas paralelamente à chegada de novos servidores, instalação das estruturas e criação de regulamentos internos. Se utilizava muito a metáfora de utilizar a ponte enquanto ela ia sendo construída. Isso, evidentemente, era muito criticado por quem imaginava que seria necessário ter a universidade estruturada antes do início das suas atividades, como foi comum na implantação de outras novas instituições antes e no mesmo período da UFFS.

Para isso, foi necessário um grande esforço para agilizar todas as atividades de acordo com o cronograma estabelecido pela Comissão de Implantação. Assim, os primeiros concursos, projetos e licitações foram encaminhados ainda no final de 2009. Com exceção de um prédio próprio, adquirido da Diocese de Santo Ângelo no Campus Cerro Largo, todas as demais instalações funcionaram, inicialmente, em salas e prédios alugados. As estruturas definitivas foram construídas no decorrer desses 10 anos, estando praticamente todas concluídas. Atualmente, a UFFS conta com 54 obras finalizadas (no valor de R$ 321,5 milhões) e 1.397 servidores concursados, atingindo uma folha de pagamento anual de R$ 185 milhões.

A UFFS é a universidade federal do Brasil construída da forma mais rápida e, certamente, com o menor custo comparativo a outras, num período em que os orçamentos anuais eram diretamente negociados com o Ministério da Educação, atendendo plenamente as demandas da Reitoria pró tempore. Além disso, a UFFS é a primeira universidade federal realmente multicampi, superando a ideia de Campus Sede e suas extensões em outras cidades. Isso significa que cada campus da UFFS é impactante, possui um conjunto de cursos, conta com uma comunidade acadêmica consistente, com estruturas padronizadas que diferem apenas em relação ao seu tamanho e às características dos cursos localmente oferecidos. Os campi foram construídos mantendo uma isonomia entre eles, a proporcionalidade de representação nas instâncias e uma relativa autonomia administrativa, pedagógica e orçamentária.

As dificuldades iniciais, decorrentes do funcionamento da universidade em espaços provisórios, como era previsível, geraram muitas insatisfações e contrariedades, às vezes materializadas em disputas. Era necessário que o corpo docente e técnico participasse ativamente na própria organização do espaço de trabalho, na organização curricular dos cursos, na realização de matrículas de estudantes, na especificação técnica de laboratórios e equipamentos, enfim, na coordenação de atividades não diretamente vinculadas aos seus respectivos cargos. Centenas de comissões foram instaladas nesse período, com a participação dos primeiros servidores concursados, muitos ingressando pela primeira vez no serviço público. Muitos processos precisavam ser instituídos, especialmente no que se refere à regulamentação interna. Havia pouca experiência administrativa por parte da maioria dos servidores e primeiros dirigentes, de forma que ela foi sendo acumulada no decorrer das próprias atividades. Nesse sentido, podemos afirmar que o período foi uma escola de gestores.

No que se refere à estrutura física, os acessos aos campi ainda eram muito provisórios. O acesso à água, energia elétrica, rede lógica e ao saneamento básico ainda estava sendo providenciado. Os móveis e equipamentos estavam em fase de compra, entrega e instalação. Tudo estava sendo construído e os prazos eram extremamente curtos para viabilizar as atividades dos estudantes sem maiores prejuízos. Além disso, era de conhecimento público a necessidade de aproveitar da melhor forma possível o período de expansão do ensino superior no país. E, para dificultar ainda mais a situação, isso dependia de eleições de novos governos e parlamentares. Por isso, por exemplo, foi decidido acelerar ao máximo possível a construção das obras, as licitações, compras e concursos. Novamente, havia também a possibilidade de planejar tudo a priori e depois executar, mas isso careceria de maior disponibilidade de tempo. Assim, surgiam as maiores críticas ao planejamento institucional, à centralização de atividades na Reitoria e à falta de tempo para debates internos mais amplos. Havia também a contrariedade à contratação de fundações de apoio, num período em que muitas delas eram duramente atacadas em nível nacional por estarem envolvidas em escândalos de corrupção e carecerem de regulamentação por parte do governo federal. A ausência de fundação de apoio própria impediu a universidade de acessar determinados recursos provindos de emendas parlamentares, impactou fortemente na agilidade da execução orçamentária e dificultou muitas ações de pesquisa e extensão.

No que se refere às obras, a opção de padronização dos prédios permitiu maior agilidade, porém, logo em seguida, as estruturas pré-moldadas traziam a desvantagem de infiltrações de água, decorrentes das suas movimentações de acordo com a mudança de temperatura. Essa situação só foi definitivamente resolvida com o envelopamento dos prédios, inicialmente destinados às salas de aulas e atividades administrativas. As licitações e compras centralizadas também representaram um ganho na agilidade e, especialmente, em função do ganho em escala, garantiram uma diminuição dos custos.

Por outro lado, aumentavam as críticas à centralização dos recursos e das decisões, que precisavam ser cada vez mais rápidas. Os concursos também foram realizados de forma centralizada, inicialmente com a ajuda da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), atuando como tutora no período inicial e, posteriormente, por uma Comissão Única e Permanente, atuando com as vagas para todos os campi. Um aspecto singular desse período inicial, foi o aproveitamento de quase todos os concursados, com vistas a economizar recursos e agilizar as nomeações de servidores efetivos. Isso, certamente, teve reflexos futuros na distribuição dos docentes, seu perfil, formação, áreas e linhas de atuação.

As divergências relacionadas ao processo de implantação da universidade foram intensificadas por ocasião do debate sobre a expansão. É muito comum que a comunidade acadêmica já instalada se preocupe com as condições existentes, temendo que a expansão implique numa transferência de recursos para novos cursos e campi com prejuízo à qualidade dos atuais. Assim, se estabeleceu uma falsa dicotomia entre qualidade e quantidade na implantação da universidade, com uma crescente rejeição a oportunidades de expansão por parte da comunidade acadêmica, num período em que o ensino superior público brasileiro estava sendo expandido. Por outro lado, diante da demanda por novas vagas e a oportunidade de maior aproximação da universidade da comunidade regional, as regiões voltaram a se organizar em torno da proposição de campi e cursos, culminando numa grande audiência pública, realizada em junho de 2013 em Erechim.

O ponto de partida desse retorno à proposição de novos campi, entretanto, foi a oportunidade de ingressar nas metas do Programa Mais Médicos, que previa, entre outros, a criação de novos cursos de Medicina. Na época, a abertura de cursos de Medicina estava interrompida no país por mais de 10 anos e, diante da necessidade de mais profissionais, que atuassem especialmente no interior do país, foi aberto um novo ciclo de expansão das Escolas Médicas. A região do Planalto Médio do Rio Grande do Sul, que conta com o terceiro maior centro de saúde do sul do Brasil, em Passo Fundo, se mobilizou junto ao governo federal, unindo os vários hospitais, movimentos sociais e representações políticas, conseguindo pautar a criação de um curso naquela cidade. Mas, para instalar um curso novo em Passo Fundo era necessário criar mais um campus.

Por isso, assim como havia ocorrido no período da Comissão de Implantação, quando no Estado do Paraná foi incluída a proposta de mais um campus para além dos quatro que haviam sido pactuados anteriormente, novas demandas de campi foram sendo apresentadas. Pelo Movimento Pró-UFFS, haviam sido proposto um total de 11 campi para a UFFS, iniciando com cinco, com uma expectativa de implantação dos demais assim que o Ministério da Educação anunciasse uma segunda fase de expansão para as universidades novas. Para além do Campus Passo Fundo, foi proposta também a criação de um campus na cidade de Concórdia/SC, ofertando os cursos de Engenharia Mecânica, Engenharia Elétrica e Engenharia de Automação da Produção.

Possivelmente, após os embates acerca da criação de uma fundação de apoio própria, a pauta da expansão, associada ao curso de Medicina em Passo Fundo, tenha sido o momento de maior disputa interna na UFFS. Várias mobilizações, debates intensos no CONSUNI e, inclusive, uma moção de repúdio ao reitor pela proposição de criar um novo campus, marcaram os anos de 2012 e 2013. Em julho de 2013, efetivamente iniciaram as atividades do Campus Passo Fundo, o que permitiu que, ainda naquele ano, numa segunda fase de expansão dos cursos de Medicina, o Campus Chapecó também fosse contemplado, o que fortaleceu imensamente a área da saúde da universidade, a estrutura física dos cursos e sua atuação regional, priorizando o Sistema Único de Saúde. O grande conflito se deu em torno do local da oferta dos cursos, e isso foi intensamente discutido na época. Para atender às exigências do governo federal para ser incluída na expansão de cursos, a cidade de oferta precisava atender uma série de condições. Na região de abrangência da UFFS, de fato, somente a cidade de Passo Fundo conseguia oferecer essas condições, o que permitiu a oferta posterior em Chapecó, cidade onde o curso ainda apresenta algumas dificuldades relativas à estrutura de saúde oferecida pela região, decisiva para os espaços de prática dos estudantes e para a avaliação por parte do governo federal.

Atualmente, esse período inicial de construção da UFFS certamente pode ser considerado como de grande aprendizado para toda a comunidade acadêmica. Na época, havia muita divergência, resultando em conflitos e embates em torno da metodologia de sua implantação. Agora, sabemos que a metodologia adotada na implantação dessa universidade foi a mais acertada e ainda precisa ser adequadamente explicitada, refletida e documentada. Embora os rumos estivessem claramente traçados, a metodologia não se baseou em ideais a priori, princípios ou dogmas. Ela está baseada na experiência de gestão colegiada, na superação de erros, na síntese do bom senso. Concluímos que a decisão de iniciar as aulas, antes mesmo de estarmos com a estrutura física construída, os processos organizados e os servidores contratados, também estava correta. Possivelmente, a presença dos estudantes possibilitou maior agilidade a todo o empreendimento. Soluções precisavam ser dadas aos problemas. E eles eram urgentes. Alguns deles nem recordamos mais e, com o passar do tempo, ficarão ainda mais esquecidos. A forma de encarar os problemas, o aprendizado deles decorrente, entretanto, ficou e seguirá servindo de referência para os desafios atuais e futuros1.

O segundo grande embate, que permanece muito atual, ocorre em relação à participação da comunidade regional nas decisões da universidade. Não é comum nas universidades públicas brasileiras que a sociedade civil organizada tenha assento em conselhos, comissões, colegiados e, muito menos, vote em consultas prévias para escolha de Reitor, Vice-Reitor e Diretores de Campus. As ideias de controle social, democracia participativa e gestão compartilhada ainda estão muito distantes das instituições acadêmicas. É como se a ciência não pudesse dialogar com a sociedade e as instituições de ensino superior constituíssem um mundo à parte na esfera pública. Em nossa região, as poucas experiências existentes dessa participação eram consideradas parte da cultura das universidades comunitárias.

Entretanto, foi a sociedade civil organizada, os movimentos e organizações sociais da região que, articulados num amplo processo de mobilização política, deram origem à UFFS. Essa ideia, embora reconhecida, infelizmente passou a ser combatida no âmbito dessa nova universidade. Por mais que se admita a importância dos movimentos sociais para a história da UFFS, há uma resistência à ideia da sua participação. A vida acadêmica e as decisões a ela pertinentes são consideradas exclusivas a quem é servidor ou estudante. Mesmo quem pesquisa movimentos e organizações sociais apresenta dificuldades e preconceitos em aceitar que eles possam participar de decisões sobre a universidade. Esse não é só um limite da ideia de universidade popular, mas uma cisão entre a ideia de democracia e ciência, de distanciamento entre a academia e a vida real.

Nesse sentido, como o CES (Conselho Estratégico e Social) já estava constituído antes da nomeação dos professores e técnicos administrativos, iniciou-se um conflito em torno de sua existência e composição, por ocasião da criação do primeiro Estatuto da UFFS. A sua composição foi resultante de acordos no âmbito do Movimento pró-UFFS, prevendo a representação dos principais movimentos e organizações sociais que participaram da luta pela universidade nos três estados. A primeira contradição explicitada nesse debate envolveu o caráter desse conselho, tendo em vista que, de acordo com a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), conselhos deliberativos de universidades federais precisam ter 70% de participação docente. Por isso, o CES da UFFS possui caráter consultivo, mas indica três nomes que integram o CONSUNI (Conselho Universitário), o órgão máximo da instituição.

A decisão tomada em relação à sua composição, que segue em vigor, é de que o próprio conselho possui autonomia para definir quem dele participa, a partir da criação de conselhos comunitários em todos os campi, inicialmente facultativos e, atualmente, previstos estatutariamente, com a mesma função consultiva em nível local. As atribuições desses conselhos estão todas regulamentadas em regimentos próprios e, desde a segunda versão do estatuto da UFFS, revisado e aprovado, a comunidade regional deixou de ser considerada externa e integra a sua comunidade universitária juntamente com a comunidade acadêmica.

Também a COEPE teve dificuldade de aceitação por parte da comunidade acadêmica. Como em 2010 a comunidade acadêmica da UFFS ainda estava sendo constituída, em sua primeira edição participaram majoritariamente representantes da comunidade regional. A participação na COEPE de 2010 foi muito significativa, envolvendo milhares de pessoas dispostas a participar da construção de uma universidade nova e de caráter popular. Mais tarde, as suas maiores deliberações acabaram sendo rejeitadas por parte da comunidade acadêmica, que alegava não ter participado da conferência. Em sua segunda edição, entretanto, percebeu-se que, além de haver menor interesse em participar, havia uma crescente contraposição às grandes causas e rumos propostos em 2010, reafirmados em 2017.

Estamos em outro contexto e, diante da nova conjuntura, as contradições de uma universidade surgida da luta social e política da região se tornam mais explícitas. Nesse sentido, atualmente podemos identificar um ataque às suas grandes causas, como à agroecologia, à educação do campo em regime de alternância, à política de ingresso e com cotas, ao cooperativismo e à economia solidária, assim como à própria ideia de universidade popular. De forma mais explícita, podemos identificar os conflitos em torno das ênfases dos cursos, dos currículos, dos métodos de avaliação, do uso de agrotóxicos e transgênicos em experimentos de ambiente aberto, dos processos seletivos e turmas especiais, da política de acesso e permanência, dos convênios com movimentos e organizações sociais. Surgem oposições também ao Centro de Referência em Direitos Humanos, ao acesso de imigrantes e outras minorias, bem como a projetos futuros, como novos campi, um campus indígena, um centro de educação do campo ou um centro de arte e cultura missioneira. De forma geral, há uma oposição clara à ideia de expansão e, em especial, à reafirmação de grandes causas, quando elas diferem de concepções tradicionais de academia, de ensino, de pesquisa e de ciência.

O terceiro grande embate, que também permanece, é em relação à estrutura acadêmica e curricular da universidade. Como a UFFS optou em não criar departamentos, iniciou-se um amplo debate sobre a vinculação dos docentes, lotados na coordenação acadêmica, mas sem integração epistemológica a uma área específica do conhecimento científico. Do conflito histórico entre departamentos e centros, foi produzido o entendimento de se prever a implantação gradativa de unidades acadêmicas, iniciando nos campi com maior número de docentes (Chapecó e Erechim). Do ponto de vista curricular, surgiu uma oposição à divisão dos conteúdos dos cursos em domínios, considerando o tempo e o tipo necessário de formação dos estudantes, a atuação dos docentes e a sua vinculação epistêmica. Com isso, os domínios foram reestruturados e vários componentes curriculares reduzidos em benefício das áreas específicas.

Há uma dificuldade estrutural no ensino superior de se desvincular da prática fragmentadora do conhecimento científico e atuar de forma interdisciplinar. Além disso, está muito presente, na universidade, a relação conteudista e bancária da relação entre ensino e aprendizagem, resultante da formação tradicional da maioria das instituições, nas quais a maioria dos servidores foi formada. Como construir uma nova universidade a partir de pessoas formadas em instituições tradicionais? É claro que uma parte significativa dos docentes da UFFS nela se integrou pela proposta inovadora e participa ativamente dessa construção. Mas, podemos pressupor que também se espera da UFFS a reprodução dos modelos e práticas tradicionais, de forma que as contradições continuam e certamente irão se acirrar com o passar dos anos.

As grandes conquistas

O caminho trilhado até aqui é de muitas conquistas em um curto espaço de tempo. Embora as contradições persistam e as dificuldades aumentem, a UFFS é um projeto grande e exitoso, que hoje conta com uma ótima estrutura, excelentes profissionais e se encontra em uma fase de implantação consolidada. Os indicadores de qualidade estão todos acima do esperado e, se comparada a outras universidades do país, a UFFS é um bom exemplo a ser seguido. A universidade já foi premiada pela sua política de inclusão, pela sua transparência, pela qualidade dos seus restaurantes universitários, pela gestão dos resíduos, pelas compras da agricultura familiar e é uma referência nacional para a política de cotas, pelo ingresso de estudantes de escolas públicas, indígenas e imigrantes.

A UFFS é a única universidade federal do país com um campus dentro de um assentamento de Reforma Agrária e o primeiro numa cidade de pouco mais de 10 mil habitantes. Ela foi contemplada com o primeiro curso de medicina do programa Mais Médicos e possui o maior número de estudantes indígenas do sul do Brasil, o maior programa de formação continuada de professores, o primeiro programa de formação de jovens rurais e de mulheres agricultoras, e já foi referência por sua atuação na coordenação dos territórios rurais e territórios da cidadania e na formação de dirigentes de cooperativas no sul do Brasil.

Nesses 10 anos, foram construídos 47 cursos de graduação, 62 especializações, 17 mestrados e dois doutorados interinstitucionais, oportunizando o acesso a cerca de 10 mil estudantes. Já são 646 projetos de pesquisa em execução cadastrados e 35.225 pessoas contempladas em atividades de extensão (171 programas de extensão e 78 projetos de cultura). A UFFS é uma experiência bem-sucedida de interiorização e deslitoralização do investimento público na educação superior2.

Com mais de 90% dos estudantes oriundos de escolas públicas e mais de 80% representando a primeira geração da família a ingressar numa universidade, o projeto se caracteriza principalmente pelo seu novo perfil. Por isso, a grande vantagem da UFFS em relação a outras universidades é sua própria história e seu projeto que unifica e mobiliza politicamente uma grande região territorial. A sua estrutura está consolidada e, como nenhuma outra universidade, ela tem a força política necessária para resistir e avançar.

Os novos desafios e a resistência

Em 2010, alguns meses após assumirmos como dirigente dessa universidade, fazíamos referência aos maiores desafios iniciais da UFFS. Além de ser uma instituição plural e aberta a todas as teorias, métodos e concepções científicas, a UFFS surge da luta histórica dos movimentos e organizações sociais, ou seja, ela nasce da comunidade para servir à comunidade. Portanto, para que ela possa ser pública de fato, a UFFS, além de ser estatal, não pode servir a interesses privados, mas sim aos anseios da coletividade. Para que possa ser democrática, era necessário construir instâncias legítimas de participação e representação da sociedade civil para a tomada das suas principais decisões. O seu caráter popular prevê a inclusão social de estudantes que historicamente nunca tiveram acesso ao ensino superior.3

Resumindo esses 10 anos de implantação, podemos afirmar que atendemos plenamente aos seus desafios e objetivos iniciais. Construímos uma boa estrutura e uma identidade para essa universidade, de compromisso com a inclusão e a justiça social. Além disso, construímos uma forma ampliada de democracia, de forma multicampi e acreditando no potencial pedagógico e emancipador do próprio processo de gestão. Formamos lideranças, gestores e profissionais altamente qualificados que, mediante o seu engajamento coletivo, permitiram todos os nossos avanços e conquistas. O funcionamento da UFFS está todo regulamentado, com regimentos internos e procedimentos consolidados para todas as suas principais ações. Atendemos a todas as grandes demandas e proposições históricas que a região apresentava para essa universidade e fomos um pouco mais além disso. O método de gestão se estabeleceu pela práxis da reflexão crítica e continuada sobre a experiência de construção coletiva, com decisões colegiadas e sempre muito bem posicionadas do ponto de vista político e institucional. Decidimos inovar e ousar, mas sempre dentro dos limites da legalidade e dos princípios basilares do serviço público. Os recursos foram muito bem utilizados, tentamos economizar o máximo onde foi possível e os relatórios de prestação de contas estão todos disponíveis para que a sociedade nos acompanhe e avalie da forma mais transparente possível.

Sabemos, entretanto, que os desafios agora são novos: a universidade precisa ser cada vez mais conhecida, reconhecida e assumida pela comunidade regional, sua grande força que lhe deu origem e que muito pode contribuir neste momento. A UFFS precisa estar cada vez mais inserida nos sistemas educacionais, agrários e de saúde, em âmbito regional e nacional, tendo como referência os grandes eixos norteadores que juntos definimos nas Conferências de Ensino, Pesquisa e Extensão – COEPE, em audiências públicas, leituras comunitárias e deliberações nos conselhos superiores. A universidade também precisa estar mais conectada com as demandas de desenvolvimento regional e políticas de Estado, em nível federal, estadual e municipal4.

Por isso, é necessário um reposicionamento estratégico da UFFS. Isso significa, em resumo: 1) manter e fortalecer seu projeto histórico: inclusivo e popular; 2) lutar pela permanência e êxito dos estudantes; 3) expandir a pesquisa e a pós graduação; 4) exigir a responsabilidade do governo federal na sua manutenção, consolidação e expansão; 5) integrar politicamente a instituição com a comunidade regional, num contexto de crise econômica, política, social e cultural do país; 6) internacionalizar a universidade, visando acompanhar as tendências globais em termos de pesquisa, pós-graduação e inovação e de consolidação universitária; 7) buscar novas oportunidades de recursos públicos e organizações sociais sem fins lucrativos, num contexto nacional tendencialmente desfavorável; 8) construir uma nova forma de gestão, dialógica, compartilhada e participativa5.

Não podemos prever como a UFFS será nesses próximos 10 anos, diante de novas condições e uma nova reitoria. Mas, com um novo contexto nacional, de ataques sistemáticos às universidades brasileiras e à redução do investimento em ciência, pesquisa e inovação por parte do governo federal, será muito difícil manter as atuais conquistas. Se a nova reitoria estiver alinhada com o atual governo federal, certamente teremos uma descaracterização do projeto histórico da UFFS construído até agora. O projeto proposto pelo governo federal é de privatização das universidades federais mediante sua adesão a programas de financiamento de empresas privadas. Isso não representa apenas uma improbabilidade na disponibilidade de recursos, mas uma adaptação do funcionamento das instituições às demandas do capital privado. Com isso, se descaracteriza, inclusive, o caráter científico das atividades de pesquisa que estarão condicionadas ao interesse econômico em seus objetivos, métodos, metas e resultados. A ciência, que se pretende crítica, seria transformada em mero instrumento ideológico para a produção de ideias, tecnologias e produtos a serviço de empresas.

Por isso, precisamos defender a ciência numa perspectiva crítica, emancipadora e cidadã, resistindo ao aparelhamento ideológico das universidades públicas, assim como à lógica de financiamento privado que está sendo proposta pelo governo federal. O caminho é seguir apostando no seu projeto popular original, com seus preceitos de fomentar o desenvolvimento regional, para promover justiça e ascensão social, por meio de uma prática pedagógica universitária para o empoderamento e autonomia dos sujeitos6. É urgente, como comunidade universitária (acadêmica e regional), a refundação do movimento Pró-UFFS, para a defesa constante da manutenção do ensino público, gratuito e de qualidade, como um direito, um bem social e um espaço democrático. Se acreditamos no potencial da educação para oferecer oportunidades e na emancipação social que o conhecimento científico crítico é capaz de proporcionar, temos a responsabilidade de utilizar a capacidade de mobilização que a UFFS produziu nessa grande região para sua própria defesa como instituição e bem público promotor de desenvolvimento regional.

Aproveito a oportunidade para agradecer aos movimentos e organizações sociais que são os verdadeiros fundadores dessa universidade e os responsáveis pela minha participação na sua construção, desde que, ainda como estudante trabalhador, pagando para estudar numa universidade comunitária e atuando no movimento estudantil, sonhávamos com uma instituição de ensino superior pública em nossa região. Nós – que tivemos a oportunidade de estudar – temos o compromisso histórico de contribuir para que as atuais e futuras gerações tenham melhores condições de vida, de trabalho e de estudo. Obrigado ao professor Dilvo Ristoff, que conheci integrando a Comissão de Implantação desta universidade, em 2009, pelo seu exemplo de liderança, sempre disposto a motivar e ouvir os que lutam pela universidade popular, e pela sua ousadia, que me contagiou e me tornou um militante dessa causa. Obrigado ao professor Jaime Giolo, parceiro incondicional na construção desta universidade, que me convidou para ser Vice-Reitor e imediatamente aceitei por se tratar de uma pessoa que quando escuto falar e agir, consigo perceber seu profundo compromisso com a justiça social. Juntos, desde o período pró tempore e depois eleitos pela comunidade universitária, abdicamos da vida pessoal e nos dedicamos integralmente à construção dessa universidade durante todos esses anos.

Agradeço muito também aos meus pais José (Juca) e à Irena, agricultores, que sempre me incentivaram a estudar e ensinaram que a vida tem sentido se for vivida repleta de significados todos os dias! O seu Juca tinha uma frase em alemão que ele falava sempre que se indignava profundamente com uma situação: “Die Ungerechtigkeit soll nie gedeihen” (A injustiça jamais deve triunfar!). Uso essa frase para refletir sobre situações e pessoas que foram injustiçadas nesse período. Por isso, neste momento histórico da vida brasileira, agradeço ao Governo Federal e ao Ministério da Educação, pela existência dessa universidade. Mas, preciso agradecer, de forma especial a dois Presidentes da República, sem os quais a UFFS não existiria: Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Vana Rousseff! A vocês, que estão sendo duramente injustiçados, o nosso reconhecimento público por terem estado ao lado dos que lutam e sofrem, que se organizaram e deram origem à UFFS, pela qual lutaremos juntos a vida inteira!

 

1 ANDRIOLI, A. I. : Discurso de Posse na UFFS. Chapecó, 25 de setembro de 2015, p. 3-4.

http://historico.uffs.edu.br/images/gabreitor/Andrioli_05_10_2015.pdf

 

2 ANDRIOLI, A. I.: Pronunciamento no Conselho Universitário sobre a lista tríplice. Chapecó, 24 de junho de 2019.

3 ANDRIOLI, A. I. : O desafio de construir a UFFS em Cerro Largo. Maringá: Revista Espaço Acadêmico, v. 9, n. 107, abril de 2010.

http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9877

 

4 ANDRIOLI, A. I.: Pronunciamento no Conselho Universitário sobre a lista tríplice. Chapecó, 24 de junho de 2019.

5 Idem.

6 Iidem.