“A importação de soja do Brasil precisa acabar!”

Entrevista para a Revista Ecologia & Agricultura

(Ökologie & Landbau 04/2021):

https://www.oekom.de/zeitschrift/oekologie-und-landbau-5

 

A soja é o principal produto de exportação do Brasil. A destruição da natureza através do desmatamento da floresta tropical, que precede o cultivo de soja, ameaça a soberania alimentar da população local. O Professor Antônio Inácio Andrioli propõe uma mudança na política agrária mundial e avalia especialmente a responsabilidade da União Europeia.
 
Entrevista: Wolfgang Neuerburg e Susanne Salzgeber
 
Andrioli, como está a atual situação no Brasil?
 
Catastrófica! Mas, sobre isso vocês, certamente, estão melhor informados na Alemanha do que nós brasileiros. Especialmente para os cientistas é difícil falar de um governo que ainda segue sendo apoiado por, no mínimo, 30% da população. Tudo gira, infelizmente, só em torno da economia. A questão ambiental é considerada um obstáculo ao crescimento econômico. Há um desmantelamento deliberado das autoridades ambientais. O Ministro do Ambiente está subordinado ao Ministério da Agricultura e o Ministério do Desenvolvimento Agrário foi extinto. O equilíbrio de poder mudou fundamentalmente: já não existe, como antes, um governo sendo pressionado por grandes proprietários rurais – os grandes proprietários rurais agora integram o próprio governo. No nível da macropolítica a situação está muito ruim. No nível micropolítico, por outro lado, há muita coisa em movimento. O destino da floresta tropical está intimamente ligado ao destino da população indígena. Eu tenho muita esperança nisso que as pessoas estão mudando no nível da pequena escala.
 
O que o senhor quer dizer mais precisamente com isso? Existe um movimento de grupos ambientalistas no Brasil fortalecendo a agricultura ecológica em pequena escala, que poderia contribuir na proteção da floresta tropical?
 
Sim, há movimentos, incluindo os que estão engajados na proteção do clima e do ambiente e, paralelamente, um governo tomando a direção oposta. Especialmente jovens e mulheres estão mais ativos, muitas vezes provenientes das classes mais pobres. Um aspecto importante para mobilizar as pessoas é a saúde. Também aqui acontecem coisas absurdas: enormes quantidades de agrotóxicos são aplicadas sobre áreas de floresta desmatada, adoecendo as pessoas. Em decorrência, elas acabam consumindo os medicamentos das mesmas empresas farmacêuticas que produzem os agrotóxicos. Mas, lentamente, as pessoas estão começando a reagir e mais jovens se interessam pela agricultura ecológica. O já conhecido êxodo rural começa a mudar em certa medida. Mais pessoas procuram se afastar de grandes cidades e um maior número de seus habitantes apoia a agricultura em pequena escala, que passa a produzir de forma ecológica, porque já não consegue resistir de outra forma. Trata-se aqui também de uma questão de soberania alimentar. Cada vez mais pessoas passam fome no campo, porque não têm acesso à terra para se alimentar.
 
Quanto de floresta tropical já foi cortada ou queimada?
 
Entre 19 e 20% da floresta tropical brasileira já foi destruída. Nos últimos 12 meses o desmatamento aumentou enormemente: 10.129 quilômetros quadrados! É o maior índice de desmatamento anual desde 2008, quando ele atingiu 12.911 quilômetros quadrados. Trata-se de uma área equiparável a 1,6 milhão de campos de futebol. Somente na região amazônica foi registrado um desmatamento de 8.381 quilômetros quadrados, 61% em apenas dois estados da federação: Amazonas e Pará. De janeiro a junho desse ano, o índice de desmatamento na região amazônica já é 51% maior ao do ano anterior, com 4.014 quilômetros quadrados. Os números são do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que é responsável pelo monitoramento e controle do desmatamento no país. Nesse ritmo, a extensão da destruição na Amazônia passará de 20% no final de 2021. Se ela vier a atingir 25%, o sistema entra em colapso.
 
O que o senhor quer dizer especificamente com “o sistema está entrando em colapso”?
 
A floresta tropical é considerada o pulmão do Planeta Terra, produzindo 20% do oxigênio mundial. Nela podem ser armazenadas anualmente cerca de 600 milhões de toneladas de carbono. Temos aqui a maior biodiversidade de vida animal e vegetal do mundo, que ainda nem sequer foi devidamente pesquisada. Tudo isso está sendo irreversivelmente destruído a partir de cada metro quadrado que é desmatado e queimado. A destruição de um ecossistema é irreversível. A floresta tropical armazena e regula o ciclo da água. Se um quarto dela estiver destruído, esse ciclo é interrompido e haverá significativamente menos chuva. A devastação da terra vai aumentar. Não podemos sequer prever as consequências da perda dessa biodiversidade, pois ela ainda é muito pouco estudada. Sequer conhecíamos a maioria das espécies que se perderam.
 
Quais são as culturas agrícolas que ocupam o lugar da floresta tropical?
 
Como terras devolutas, a maior parte dessa região pertence ao Estado. Numa área de 51 milhões de hectares, que equivale ao território da Espanha, o atual governo brasileiro permite o desmatamento e as queimadas em uma escala gigantesca. Grandes corporações, mineiros e madeireiros exploram essa terra. A exploração madeireira é seguida pela criação de gado, depois pela cana-de-açúcar e pela soja. Geralmente, após cinco anos de cultivo da soja, a maior parte desse solo já não é mais cultivável. Assim, se realiza uma troca absurda, transformando solo valioso em terreno baldio.
 
Qual proporção ocupam o cultivo da soja e a criação de animais em relação ao desmatamento da floresta tropical no Brasil?
 
Em relação ao desmatamento, a pecuária é decisiva, tendo em vista que ela é a primeira atividade econômica realizada após o corte da madeira e a mineração. A sua participação no desmatamento é estimada em 80%. Ocorrendo como atividade substituta em seu lugar, a soja ocupa 27% dessa área.
 
Qual é a área e a quantidade de soja atualmente cultivada no Brasil?
 
A soja é cultivada em 38 milhões de hectares, uma área maior que a Alemanha! Isso representa atualmente 134 milhões de toneladas de soja por ano, 90% das quais são utilizadas para ração animal e biodiesel. 84 milhões de toneladas de soja são exportadas anualmente. Há cinco anos, a produção de soja brasileira era de 114 milhões de toneladas em 34 milhões de hectares. A expansão da sua produção para exportação – principalmente para a China e a Europa – ameaça a existência dos pequenos agricultores e de povos indígenas, que são expulsos de suas terras, gerando mais empobrecimento e fome no campo. Mesmo em tempos de pandemia do Coronavírus ocorrem despejos de terras em decorrência do uso agrícola intensivo da floresta tropical brasileira, aumentando o número de mortes em comunidades indígenas e de pequenos agricultores. A destruição da natureza, que está intimamente ligada à utilização de agrotóxicos, é, ao mesmo tempo, uma violação do direito à alimentação e a um ambiente saudável. Assim, ela coloca em risco a soberania alimentar do povo brasileiro. A soja tornou-se o principal produto de exportação do Brasil, atingindo, para seu cultivo, 57% da área cultivável, enquanto a produção de alimentos básicos como, por exemplo, a de arroz, foi reduzida de 28 para 7%.
 
Que papel desempenha a agricultura ecológica no Brasil? Existe o cultivo de soja orgânica no Brasil? Em que proporção?
 
Estima-se que ela não passa de 5% da produção total de soja. O restante, ou seja, 95%, é soja transgênica. A soja orgânica é cultivada principalmente em regiões dos Estados do Mato Grosso e do Paraná. Infelizmente, não há estudos sobre a relação entre a soja orgânica e o desmatamento. Mas o potencial de crescimento no cultivo de soja orgânica existe.
 
O senhor afirma que depois das queimadas, ou seja, do desmatamento, essas áreas são ocupadas pela criação de gado. Qual é a quantidade de bovinos mantidos nessas áreas no Brasil?
 
Infelizmente, não estão disponíveis números oficiais confiáveis sobre esse assunto. Sobre o cultivo da soja nós conseguimos produzir os dados nas universidades e a partir de informações da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), mas ainda não há estudos próprios envolvendo a criação de gado.
 
Quais são os principais países importadores de soja e carne do Brasil?
 
Em relação à soja os mercados mais importantes são a China e a União Europeia, onde o produto entra pelos Países Baixos e a Espanha. A carne é exportada principalmente para a China, Hong Kong, Arábia Saudita, Rússia e União Europeia, com entrada pelos Países Baixos.
 
Em sua opinião, o que deveria ser alterado no Acordo de Livre Comércio entre a União Europeia e o Mercosul com vistas a impedir o desmatamento da floresta tropical brasileira?
 
Às vezes eu não sei se a Europa se comporta de forma ingênua ou hipócrita. Dois pontos me parecem centrais: um é que não se pode permitir que o governo brasileiro não cumpra seus acordos. O país participa de todos os acordos importantes, mas não existe um mecanismo para que eles sejam efetivamente cumpridos. E, em segundo lugar, é necessário mobilizar a sociedade civil. A Europa poderia assegurar que o Acordo de Livre Comércio com o Mercosul, o “Mercado Comum do Sul”, não seja ratificado. Além disso, deveria haver na União Europeia a rotulagem obrigatória em produtos de origem animal (por exemplo, leite, carne e ovos), em cuja cadeia produtiva tenham sido utilizados transgênicos. 95% da soja brasileira é transgênica. Cada vez mais pessoas na Europa estão exigindo produtos livres de transgênicos e as empresas já estão respondendo às exigências dos consumidores. Aqui cada indivíduo pode começar a contribuir, se a lacuna acima descrita for fechada e a rotulagem obrigatória for aplicada. Em geral, não se deve estender a mão aos culpados. Como uma representante do governo e defensora do uso de agrotóxicos, conhecida no Brasil como a “Musa do Veneno”, pôde ser convidada para a abertura da Semana Verde de 2020 em Berlim? Essa dupla moral é a pior.
 
O que a comunidade mundial poderia fazer em conjunto para proteger a floresta tropical brasileira?
 
Uma mudança na política agrícola internacional em favor de uma agricultura regional, ou seja, um afastamento da globalização no setor agrícola poderia ser uma solução. A preservação mundial da agricultura familiar e camponesa, que com solos saudáveis ajuda a proteger o clima, é a melhor medida para uma produção alimentar sustentável e, ao mesmo tempo, para a proteção ambiental e um comércio mundial justo. Uma reforma agrária ecológica e socialmente justa na União Europeia poderia se basear no apoio a pequenos agricultores, na proteção dos insetos e na preservação do clima. Existem alternativas, mas os governos precisam tomar mais iniciativas, uma vez que eles dispõem de instrumentos para apoiar os agricultores, especialmente no período de transição agroecológica, uma vez que nessa fase de conversão a médio prazo eles ficam suscetíveis a rendimentos mais baixos e custos mais elevados. Escolas e todas as instituições governamentais poderiam, por exemplo, comprar os seus alimentos para refeições diretamente dos agricultores da região ou de suas cooperativas, ao invés de grandes empresas. Nós tivemos uma boa experiência no Brasil com a lei da merenda escolar e, certamente, poderíamos aprender muito uns com os outros.
 
Que possibilidades o senhor vê para a população (indígena) do Brasil em proteger a floresta tropical e, ao mesmo tempo, poder viver dela?
 
Sem os povos indígenas a proteção das florestas tropicais não será bem sucedida. Eles conhecem o habitat, possuem o conhecimento de como ele pode ser gerido sem o destruir. Eles viveram de forma sustentável durante milhares de anos. Portanto, não é de se surpreender que as grandes corporações queiram expulsar os povos indígenas. Essas pessoas precisam urgentemente da nossa proteção. Não se pode substituir os agricultores através da digitalização, e isso, obviamente, se aplica da mesma forma também na Europa. Precisamos recorrer aos conhecimentos tradicionais em todo o mundo e combiná-los com a ciência. Apenas as regiões agrícolas conseguirão manter um equilíbrio entre a utilização e a conservação dos recursos naturais. Em outras palavras, precisamos de mais agroflorestas ao invés de monoculturas. Podemos aprender com o exemplo dos povos indígenas em todo o mundo. Ninguém é contra a sustentabilidade, mesmo que a maioria das pessoas ainda não viva de forma sustentável. É aí que a consciência precisa mudar ainda mais. Ela precisa levar a um ser e viver consciente, por assim dizer.
 
Seria apenas uma visão eurocêntrica e egoísta a exigência da União Europeia para que o Brasil preserve a floresta tropical em favor do clima do mundo? Que outras responsabilidades a União Europeia teria que assumir para que o Brasil não se sinta o único responsável?
 
Em primeiro lugar, o acordo com o Mercosul, que destrói a agricultura familiar e camponesa, tanto na Europa como na América Latina, precisa ser suspenso a todo o custo. Basicamente, trata-se de criar um mercado de vendas para produtos da indústria europeia e, por outro lado, de aprofundar a dependência de produtos agrícolas da América Latina. A soja e a cana de açúcar são bons exemplos para isso, porque ambas as monoculturas são conhecidas pelo maior uso de agrotóxicos. Espera-se que o Brasil produza etanol barato a partir da cana-de-açúcar e carne da criação intensiva de animais e proteína barata a partir da soja, enquanto os custos ambientais e sociais continuam sendo externalizados. Só as maiores corporações e os grandes proprietários de terras podem ser beneficiados por essa política comercial da Europa. O meio ambiente, os agricultores e os consumidores de ambos os lados do Atlântico só têm a perder. As decisões sobre esse acordo, portanto, não devem ser deixadas para as grandes empresas e seus lobistas, pois eles seguem interesses completamente diferentes do bem comum da sociedade. É por isso que o veto ao acordo do Mercosul é também um sinal de mais democracia e justiça social!
 
O que a Alemanha poderia fazer especificamente para impedir o desmatamento de florestas nativas? Que exigências o senhor teria para a política alemã?
 
Além de interromper o acordo do Mercosul, ela poderia rotular os produtos derivados de animais alimentados com alimentos transgênicos. Da mesma forma, os resíduos de agrotóxicos na soja importada devem ser controlados de forma mais rigorosa e transparente na Alemanha. Em resumo, não se deveria importar mais soja do Brasil enquanto ela estiver relacionada a violações de direitos humanos e à destruição ambiental. E, se os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e a Agenda 2030 forem realmente levados a sério, ao invés de apoiar o governo brasileiro com recursos do Ministério do Desenvolvimento e da Cooperação Econômica (supostamente para promover a agricultura sustentável), o governo alemão poderia apoiar a criação de um centro de competência para a formação de agricultores com ênfase na Agroecologia.
 
Uma expansão significativa da agricultura ecológica – ou de métodos agroecológicos – em nível mundial poderia resultar numa melhoria da situação no Brasil no que se refere à proteção das florestas tropicais?
 
Sim, porque o objetivo da agricultura ecológica é desenvolver uma agricultura que seja, ao mesmo tempo, sustentável do ponto de vista ambiental, produtiva e rentável. Consideramos a agricultura ecológica como parte integrante da Agroecologia, ou seja, da aplicação sistemática dos conhecimentos ecológicos no domínio da agricultura. Ela deve ser entendida como uma reação aos efeitos negativos da implementação das assim chamadas teorias de modernização no âmbito da “Revolução Verde“. Ela tem um forte componente político, na medida em que produz um efeito econômico estabilizador nos pequenos agricultores em relação à redução de insumos externos e à preservação das bases naturais de produção, visando reduzir a dependência tecnológica. Assim, ela é simultaneamente um movimento político, uma abordagem científica e uma forma de produção econômica. Ela parte do potencial de uma agricultura que baseia a sua lógica de produção na conservação dos recursos naturais e na aplicação racional dos conhecimentos tradicionais e locais dos agricultores. Eu defendo que a Agroecologia, juntamente com a auto-organização dos agricultores e consumidores, é a única forma futura viável para a produção de alimentos, que pode ser crucial para a conservação da floresta tropical e de toda a biodiversidade. Os conhecimentos tradicionais dos agricultores podem ser combinados e integrados com as mais recentes descobertas no âmbito científico. Através da Agroecologia e da Economia Solidária é possível combinar a conservação da natureza com a agricultura, desenvolvendo uma forma de produção alimentar adequada às atuais e às futuras gerações.
 
Muito obrigado pela entrevista!
 
Antônio Inácio Andrioli é professor de Agroecologia e cofundador da Universidade Federal da Fronteira Sul. Foi agraciado com o Prêmio Bávaro de Proteção à Natureza 2020 do BUND (Amigos da Terra da Baviera). Seu novo livro em alemão “O Brasil entre a esperança e a ilusão. Olhares críticos sobre um país na crise (eco) ambiental” foi publicado em 2020 na editora Oekom de Munique está disponível em português na editora CRV de Curitiba.