Neonazismo e insegurança social na Alemanha

Sessenta anos após a libertação dos últimos sobreviventes de Auschwitz, a polêmica em torno do passado nazista não está superada na Alemanha. O partido nazista NPD (Partido Democrático Nacional da Alemanha), formou bancada na Saxônia, vem elegendo deputados em outros Estados alemães e está disposto a continuar organizando manifestações como a do dia 08 de maio, que marca o fim da Segunda Guerra Mundial, em memória aos soldados alemães. As manifestações, embora pequenas, atraem a atenção seja pela forte rejeição que enfrentam – o que sempre demanda intensa mobilização policial para proteger e isolar os manifestantes frente aos grupos anti-nazistas –, seja pelo espaço ocupado na imprensa. Os partidos maiores, como o SPD e a CDU/CSU, há mais tempo vêm propondo a proibição do NPD, alegando sua contrariedade aos “princípios democráticos e constitucionais” vigentes no país. O problema, entretanto, é que as tentativas de proibição impetradas até o momento, além de inócuas, só têm contribuído para um crescimento dos neonazistas. Como se explica esse crescimento?

O passado nazista é ainda um tabu no debate político da Alemanha. A constante tentativa de moralizar o tema, sem enfrentá-lo diretamente, isolando-o do seu contexto sócio-político, remete o problema a personagens e gerações do passado que estariam “carregando uma culpa eterna” repassada como herança às gerações posteriores. A caracterização do tema como fenômeno único e a restrição do debate ao passado e às pessoas envolvidas impede uma compreensão mais profunda do dilema presente, minimizando a questão a um partido ou a grupos sociais minoritários na sociedade. Chama a atenção, entretanto, o espaço que o debate vem ocupando na mídia e a sua estreita relação com outras temáticas cotidianas.

As críticas ao imperialismo norte-americano e ao terrorismo do governo israelense sobre o povo palestino, por exemplo, são muito difíceis para um alemão, pois a crítica ao governo de Israel é rapidamente taxada de anti-semitismo e a denúncia das atrocidades do governo Bush interpretada como falta de gratidão pela “ajuda” recebida dos EUA por ocasião da “libertação do nazismo” e a posterior reconstrução do país. Mais problemática ainda é a comparação de Bush com Hitler, aliás, de qualquer totalitário do mundo com Hitler, já que este é visto como único e original, sem possibilidades de “plágio”. Um exemplo deste problema foram as declarações da ex-Ministra da Justiça da Alemanha, Herta Däubler-Gmelin, que teve de abandonar o cargo por ter insinuado tal comparação diante das declarações de Bush dividindo o mundo em bons e maus.

É claro que o anti-semitismo é outro fenômeno real, assim como o antiamericanismo e que no interior do movimento crítico à globalização neoliberal estão também dispersos grupos nazistas. Por isso, é compreensível que em qualquer discussão destas seja necessária uma sensibilidade especial, tendo em vista o passado. Mas, conceber o nazismo como algo superado e único, sem permitir comparações e sem situá-lo no contexto que permite sua ascensão, é mistificá-lo, assim como Hitler ainda aparece mistificado como sujeito. Não é por acaso que o recente filme O Naufrágio, que registra os últimos dias do ditador, foi tão criticado na Alemanha, por constranger os expectadores, que chegaram a demonstrar compaixão pelo seu grande vilão histórico, contradizendo a imagem que, historicamente, se tenta passar de Hitler, como sendo a de um sujeito cruel, inescrupuloso, “anormal”. 

Hitler foi eleito pelo povo alemão num tempo em que ditadores totalitários chegaram ao poder de Estado em muitos países do mundo. Diante de altos índices de desemprego e miséria, da derrota da Primeira Guerra Mundial ainda presente no imaginário popular, do caos econômico decorrente da crise financeira de 1929 e do fracasso da social democracia no poder, Hitler foi apoiado conscientemente pela burguesia alemã e transformado em “salvador da pátria” para a população. É importante registrar que, antes de ser eleito, o austríaco Adolf Hitler esteve preso por liderar um golpe de Estado na Alemanha e, na prisão, escreveu seu famoso livro Mein Kampf (Minha luta), editado pela primeira vez em 1925, onde deixa claras suas intenções políticas.  Não é possível afirmar, portanto, que os apoiadores e eleitores não sabiam dos seus planos uma vez eleito. Ademais, um duplo erro histórico beneficiou a escalada nazista. A resistência a uma eleição da extrema direita liderada por Hitler, em aliança com os partidos de direita da época, era muito pequena, visto que a social democracia, iludida com o apoio da burguesia, havia dado conta de liquidar os comunistas e socialistas, abrindo o caminho para a virada conservadora. Em tal contexto, os comunistas, também já não faziam questão de diferenciar a social democracia das posições da direita alemã ascendente.

Uma vez no governo, Hitler se encarregou de destruir rapidamente qualquer instrumento que pudesse lhe impor alguma resistência, proibindo os partidos socialdemocratas, socialistas e comunistas, e extingundo os sindicatos e a liberdade de imprensa. Em seguida, contou com a omissão da maioria do povo alemão e ficou livre para construir sua hegemonia imperialista, ocupando e conquistando territórios vizinhos, eliminando em torno de 30 milhões de pessoas, dentre as quais 6 milhões eram judeus. O fim do império nazista (o assim chamado Drittes Reich – Terceiro Império Alemão) ocorreu definitivamente no dia 08 de maio de 1945, quando as tropas aliadas (França, Inglaterra e Estados Unidos) dividiram a Alemanha com a União Soviética, contra a qual Hitler fôra derrotado. A ideologia nazista, apoiada na idéia de supremacia da raça ariana, no entanto, rendeu muitos dividendos econômicos à burguesia alemã, que contava com um poderoso aliado: um aparato estatal extremamente forte com a disposição de eliminar qualquer força “contrária ao desenvolvimento nacional”. As guerras e o extermínio humano empregaram muitas pessoas e subsidiavam o capitalismo nacional em expansão. Essa é uma versão histórica pouco comentada sobre o nazismo, pois revela os interesses econômicos que davam sustentação ao terrorismo de Hitler. Inúmeras empresas que lucraram com o nazismo continuam existindo e, em princípio, não teriam nenhum problema com ditadores, desde que estes estejam a seu serviço e permitam reproduzir a lógica do capital.

No contexto atual, a insegurança social atinge 60% da população alemã: 12,6% da PEA –População Econômica Ativa – está excluída do mercado de trabalho (são oficialmente 5,2 milhões de desempregados, a maioria com baixa qualificação e sem produzir uma renda mínima para sobreviver); 25% da PEA está suscetível à pobreza (em caso de divórcio, acidente, demissão ou doença); e 30% da população empregada teme a perda do emprego. O aumento do trabalho precário acompanhado pelo desmonte social conduzido pela social democracia no governo e, em sua maior parte, apoiada pelo bloco de oposição CDU/CSU, cria um contexto em que o discurso populista, alicerçado na discriminação aos estrangeiros (os supostos culpados pelo desemprego), se torna atrativo e ganha espaço mais claramente através da extrema direita.

O racismo na Europa é um fenômeno antigo e enganam-se os que pensam que ele estaria superado. Conforme pesquisa realizada em 2004, 60% dos alemães acreditam que há muitos estrangeiros no país e 36% da população chega a afirmar que, em caso de carência de empregos, os estrangeiros deveriam ser enviados de volta a seus países de origem. Num contexto desses, soma-se a posição do bloco conservador CDU/CSU que se manifesta claramente contra a entrada de estrangeiros no país, com o discurso populista de proteger a nação de um possível aumento da insegurança e “falta de integração” decorrentes da entrada dos “pobres”, muitas vezes simplesmente rotulados de “criminosos”. Curiosamente, a direita se manifesta surpresa e, por vezes, indignada com o crescimento da extrema direita, como se em suas fileiras e no imaginário que procura construir já não estivessem presentes os próprios elementos do nazismo.

A despolitização da maioria da população, um resultado dos 16 anos de governo da CDU/CSU, a guinada neoliberal da social democracia, no governo desde 1998, e a ausência de alternativas viáveis pela esquerda, abrem o caminho para opções nacionalistas, as quais nunca deixaram de estar presentes. Não há uma previsão de crescimento do partido nazista, mas o contexto socioeconômico, sem dúvida, lhe favorece e, por isso, a polêmica em torno da sua proibição e propósitos ganha espaço.

Nesse aspecto, o principal elemento é o aumento da insegurança social, pois pessoas com medo ficam mais predispostas aos argumentos da extrema direita, como a constituição de uma sociedade monocultural, o reforço do aparato repressivo do Estado nacional e a instituição da pena de morte. As propostas do NPD não são novas e perpassam outros partidos de direita que, após longos períodos no governo, agora demonstram surpresa com a eleição de deputados nazistas. A Alemanha também não é uma ilha dentro da Europa, tendo em vista que na maioria dos países da União Européia governam partidos de direita, vários dos quais em aliança com a extrema direita.

A onda conservadora que atinge a Europa e abre espaço ao fascismo é resultado do contexto de exclusão social que marca o atual período. A dificuldade em manter o crescimento econômico coloca em risco a eficácia das políticas compensatórias “corretoras das disfunções do mercado”. Com a continuidade do desmonte do Estado de bem-estar social e o fim da política de pleno emprego (o que se tornou ideologicamente supérfluo aos capitalistas com o fim da guerra fria), há uma tendência de aumento da exclusão social também nos países industrializados. A exclusão social tende a se agravar na Alemanha, portanto, apresentando-se como um dos elementos estruturais e constitutivos do modo de produção capitalista.  Como resultado, temos o anúncio de sobrevivência dos “capazes”, gerando um novo darwinismo social: uma luta desenfreada pela manutenção do status quo e pela possibilidade de inclusão social. Os sintomas mais aparentes dessa conjuntura são o medo e o aumento do preconceito como expressão do aumento da insegurança em toda a sociedade.  E, diante da ausência de perspectivas, idéias antigas, dadas como ultrapassadas, se afirmam e passam a surtir efeito.

O nazismo, como fenômeno histórico, continua vivo e independe da existência de partidos. Além de um contexto a seu favor, sua força depende, principalmente, das opções políticas da classe dominante, às quais o totalitarismo nunca deixou de ser uma alternativa, especialmente nos momentos em que a classe trabalhadora está desmobilizada e oferece menos resistência.

 

* Artigo publicado na Revista Espaço Acadêmico Março/2005