Cultura e estilo intelectual

Um dos aspectos mais interessantes de viver em um outro país, certamente, é o permanente confronto com a cultura de um outro povo, com outra história e outras formas de comportamento humano. A experiência de estudar em outro país, no entanto, requer um processo de adaptação, um período em que as constantes comparações permitem um olhar mais crítico com relação à sua própria identidade cultural, na medida em que esta, muitas vezes inconscientemente, também vai sendo modificada. Entre essas adaptações, uma das maiores dificuldades iniciais para a atividade acadêmica em outro país está relacionada ao estilo intelectual, que, embora apresente características internacionais comuns, está impregnado de valores culturais locais, importantes para o convívio social em cada sociedade. A tarefa de analisar estilos intelectuais, no entanto, já pressupõe a existência de um estilo próprio no momento de abordá-los, o que, em boa parte, define a forma, a estrutura e o conteúdo priorizado e expresso nessa abordagem. Além disso, o estilo próprio de cada autor passa a ser influenciado pelas experiências de confronto com outros estilos possíveis e, pela própria análise dos estilos diferenciados, possivelmente, damos um passo a mais rumo à identificação do próprio estilo.

São poucas as tentativas existentes de análise de estilos intelectuais. Uma das mais marcantes, certamente, foi realizada pelo cientista social norueguês Johan Galtung, apresentada em forma de conferência por ocasião dos Dias Acadêmicos da Universidade Livre de Berlim em 1982[1]. O estudo apresentado por Galtung está baseado em sua experiência internacional, suas impressões e pontos de vista, motivados pela constatação de que muitos intelectuais não se dão conta das particularidades de sua própria comunidade e de seus círculos acadêmicos, sendo capazes de caracterizar todos os demais menos a si mesmos. Considerando a originalidade dessa tematização realizada por Galtung, ao classificar os estilos intelectuais dominantes no mundo em 4 grupos (teutônico, saxônico, gaulês e nipônico)[2], nos propomos a apresentar neste breve texto uma síntese que, evidentemente, não deixará de transparecer nosso próprio estilo e as experiências realizadas com os tipos identificados. 

Antes de tentar classificar os intelectuais, Galtung procura definir o que compreende por estilo acadêmico. Segundo Galtung, os intelectuais, em todo o mundo, podem ser caracterizados pela sua constante tarefa de transformar impressões em expressões, atribuindo às impressões uma forma lingüística, seja na forma oral ou escrita. O objetivo comum é descrever a realidade, para compreendê-la. Para que esse trabalho tenha êxito, tanto a liberdade de expressão como a liberdade em “coletar” impressões é decisiva. Para a validação do trabalho intelectual realizado, entretanto, há a necessidade de apresentar as intenções de cada pesquisa, seu desenvolvimento e resultados a círculos acadêmicos e à publicidade crítica. Esse espaço, em que a produção intelectual adquire validade, porém, está limitado por determinadas convenções, métodos e formalidades que definem, em boa parte, o estilo intelectual adotado em cada cultura.

Um estilo intelectual, portanto, pode ser compreendido como parte integrante de uma cultura e passa a ser condicionado por impressões, resultantes do processo de validação do conhecimento científico em determinados círculos acadêmicos. Estes estilos, por sua vez, são fortemente influenciados pela cultura dominante, pois a própria atribuição de ciência está intimamente imbricada com aquilo que é intersubjetivamente aceitável nos círculos intelectuais. Parafraseando Marx, poderia se dizer que o estilo intelectual dominante em uma sociedade é o estilo da classe hegemonicamente dominante. Por outro lado, do ponto de vista individual, os elementos subjetivos e pessoais do sujeito pesquisador é que definem o processo de pesquisa. Com o objetivo de identificar as diferenças de estilo entre a dimensão individual e a universal é que Galtung sugere sua classificação em sub-civilizações acadêmicas dominantes, integradas na divisão dicotômica do mundo entre centro e periferia.  Em termos gerais, os estilos intelectuais pertencentes ao centro podem ser subdivido em dois grupos: por um lado, os estilos gaulês e teutônico, caracterizados pela centralidade na teoria e na análise de paradigmas (os dados empíricos servem para ilustrar as premissas da base teórica, sem caráter de comprovação); por outro lado, os estilos saxônicos e nipônicos, centrados na produção de teses, na documentação empírica, com menor valorização da teoria.

De maneira mais detalhada, os estilos se diferenciam claramente. O estilo saxônico privilegia o debate e o discurso, para o qual acordos e trocas de gentilezas são bastante comuns. Tendo em vista que o estímulo aos atores do debate é prioritário, há uma tendência dos debatedores se concentrarem nos aspectos positivos apresentados. A busca da unidade e mesmo a postura de mudança de posição diante dos argumentos apresentados é louvada por parte dos participantes do debate. Nos estilos teutônico e gaulês, ao contrário, a crítica se concentra sob o ponto fraco identificado no debate, as gentilezas deixam de ter espaço e o apresentador de uma tese, ciente de sua posição de “réu”, procura agir com o máximo de cautela possível. Para os teutônicos e gauleses o fato de ser escutado e criticado já constitui uma honra em si, diante da qual as gentilezas cedem espaço à rigorosidade. No estilo nipônico, por sua vez, rege um respeito quase absoluto à hierarquia acadêmica, há um sentimento de coletividade que não deve ser afrontado e o debate constitui um ato mais social do que propriamente acadêmico. O ordenamento dos debatedores em escolas teóricas assume um papel central e o convívio na diversidade e a preservação das contradições são objetivos pré-estabelecidos e importantes em qualquer discussão. Assim, também a valorização da humildade, de procedimentos dialéticos e holísticos, com pouca teoria, expressões não ocidentais, sem afirmações categóricas ou absolutizadoras, uma constante luta contra o atomismo, preservando a indivisibilidade e a unidade na diversidade, constituem características centrais do estilo nipônico.

A maior diferença na forma de se relacionar com as diferenças de opinião, no entanto, certamente está mais acentuada entre os estilos saxônico e teutônico: enquanto os saxônicos procuram, conscientemente, uma aproximação, os teutônicos se afirmam na diferença, na oposição, na radicalização de posições teóricas. Os teutônicos também costumam levar o debate mais a sério, como se esse constituísse a própria vida. Agindo, majoritariamente, de forma dedutiva, no estilo teutônico a fundamentação teórica ocupa o centro do debate, pressupondo que estando aceitas as premissas, logo as conclusões também precisam ser válidas. Exatamente por essa postura, o problema maior do estilo intelectual teutônico parece ser sua tendência de inserir a realidade numa espécie de “camisa-de-força”.

No que se refere às reações diante de problemas, as diferenças entre os estilos intelectuais dominantes também são claras. Para os gauleses a construção de teorias não necessariamente obedece a uma lógica dedutiva; é a força das palavras e da arte do convencimento que ocupa um lugar decisivo no debate teórico, mais centrado na elegância do que na estrutura lógica. Por outro lado, os gauleses se aproximam do estilo teutônico ao valorizarem a concorrência, ao se basearem nos melhores estudantes e na conseqüente tendência de elitização intelectual. Outra característica comum entre os gauleses e teutônicos é a busca constante por um novo território, por superar espaços já conquistados, por evoluir constantemente. Mas, na forma a divergência é frontal: enquanto o estilo gaulês preserva a elegância e, em sua acentuada prosa eloqüente e elitista, por vezes deixa de observar a rigorosidade, esta última é a base do estilo teutônico que, para alcançá-la, muitas vezes, despreza a elegância. O estilo teutônico mantém acentuada a hierarquia “mestre-discípulo” e tende a expressar uma arrogância intelectual, por vezes aparentando não ter mais nada a aprender. Nesse sentido, o discurso é sério, seco e sem humor, objetivando, constantemente, a identificação de problemas na seqüência do raciocínio dos debatedores. Também no estilo gaulês a rigorosidade é acentuada, mas baseada na concepção de que os debatedores precisam provar que sabem se defender de forma autônoma e competente. Nesse sentido, pode-se afirmar que no estilo gaulês o tensionamento dialético e o domínio da linguagem (de forma correta e elegante) são fundamentais; no teutônico o fundamental é a ampla abordagem teórica e o aprender a pensar de forma estruturada; no saxônico a importância maior está na forte vinculação com fatos da realidade, na presença de uma sólida base empírica; e, no nipônico, o importante é relacionar os fatos entre si, buscando a contextualização. Resumidamente, a comunidade científica teutônica pode ser caracterizada como vertical, individualista e polarizada; a gaulesa como horizontal, individualista e polarizada; a saxônica como horizontal, individualista e pouco polarizada; e a nipônica como vertical, coletivista e despolarizada.

Quais seriam as conseqüências da presença maior de um estilo intelectual para determinada sociedade? Até que ponto os estilos intelectuais apresentam um caráter de classe? De que forma os próprios conceitos de verdade e realidade estão culturalmente definidos? Será que os estilos intelectuais dominantes estão relacionados a posições históricas de poder assumidas pelos povos que os constituem? Estas questões Galtung tematiza em seu texto e conclui afirmando que a concepção de verdade em cada cultura se modifica de acordo com a posição que uma determinada sociedade ocupa no mundo. Assim, concepções estáticas da realidade tendem a interessar os dominadores e compreensões mais dialéticas e flexíveis da realidade tendem a interessar os dominados. A separação entre estilos mais teóricos e mais empíricos, todavia, também interessa à cultura dominante, uma vez que a compreensão da realidade com vistas a transformá-la não pode prescindir de uma destas duas dimensões.

Seguindo esse raciocínio, enquanto a periferia tende a continuar reproduzindo os estilos intelectuais hegemônicos e suas concepções de verdade, objetividade e método científico, a periferia da periferia poderia ser mais criativa, ousando a descoberta de novos caminhos, exatamente por não estar tão ocupada com a pressão da constante imitação para ser valorizada. E essa é a esperança anunciada por Galtung ao final do seu texto, que ele conclui com a afirmação da necessidade de inovar, de ir para além dos estilos intelectuais hegemônicos no mundo. Como toda tentativa de classificação em categorias principais, também Galtung pode ser criticado pela ausência de particularidades que deixou de analisar e, inclusive, pela falta de abordagem de vários estilos intelectuais presentes no mundo, mas que não exercem uma função dominante. Além disso, certamente, muitos dos intelectuais que atuaram e atuam nas culturas acadêmicas caracterizadas não compartilhariam da classificação operada por Galtung. A combinação de estilos seguramente é mais provável, mas a tentativa realizada é louvável e permite uma relativa visualização e comparação entre os estilos intelectuais que continuam dominando a forma e o conteúdo do conhecimento científico construído internacionalmente.

Estilos intelectuais, assim como a própria realidade, entretanto, estão em constante movimento. Estilos estão diretamente imbricados com cultura, com formas de pensar e de agir, as quais se modificam historicamente. Mais importante do que compreender os estilos hegemônicos na produção intelectual é a possibilidade de desenvolver um estilo intelectual próprio, que permita um olhar distinto e original sobre a realidade, com vistas a transformá-la. Compreender-se como autor de um texto e/ou de uma pesquisa implica no reconhecimento de idéias de estilo próprio, as quais se apresentam ao próprio autor com autonomia própria tal, que passam a influenciar o autor quando este as relê e reflete. Mesmo que os sujeitos utilizem uma linguagem comum para se compreender entre si, cada indivíduo possui uma maneira, um estilo, um significado único a expressar, que merece ser analisado. A possibilidade de atribuir um estilo particular e único ao articular e expressar uma linguagem é que permite a originalidade do sujeito, que, a partir de si mesmo e de suas relações com outros sujeitos e o meio ambiente em que vive, desenvolve significados aos seus pensamentos.

Ao mesmo tempo, a identificação do paradigma, no qual um texto se insere, constitui uma das condições para sua interpretação. O paradigma teórico representa o espaço em que as categorias teóricas escolhidas se encontram, se articulam e se orientam mutuamente. Contudo, é o processo autônomo de construção da singularidade de um texto, através do qual sua nova dinâmica passa a ser desenvolvida, sem se deixar limitar pelo paradigma ou referencial teórico fundante, que conduz à originalidade, ao particularmente novo, que ainda não fôra escrito, também por ainda não ter sido assim pensado. Diante da necessidade de validar conhecimentos através de uma publicidade crítica intersubjetiva, a clareza na identificação de um objeto a ser problematizado constitui um pressuposto de suma importância. Entretanto, entre o esquema teórico articulado pelo sujeito de uma pesquisa e a unidade objetiva da realidade há um espaço em aberto. E é precisamente nesse espaço que a construção de saberes acontece, os quais são explicitados por uma determinada linguagem e estão integrados a um estilo intelectual em desenvolvimento e por eles definidos.

 

Revista Espaço Acadêmico nº 66 – Agosto 2006